São Paulo, terça-feira, 10 de março de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

TPI: Tribunal Poético Internacional


Não adianta lançar uma ordem de prisão sobre Bashir se não existe capacidade de prendê-lo


AH, COMO era bom. Como era bom que existisse um tribunal internacional capaz de punir os maus e proteger os fracos. Um tribunal que impedisse a violação dos direitos humanos, e dos próprios seres humanos, em nome dos mais elevados princípios universais. Mas existirá mesmo essa ficção? Ou a existência de uma tal entidade perfeita não passa, precisamente, de uma ficção imperfeita?
Alguns idealistas acreditam que já existe tal organismo. E citam, com total fé humanitária, o Tribunal Penal Internacional. Exatamente. O mesmo que conseguiu julgar e, imaginam eles, capturar o infame Slobodan Milosevic, entretanto morto. E o mesmo que, recentemente, deu um passo histórico e concedeu ordem a prisão a um chefe de Estado. Falo de Omar al Bashir, presidente do Sudão.
Em teoria, a notícia é inspiradora, e não existe poeta no mundo que não aplauda o nobre idealismo do tribunal. Até eu solto uma lágrima: Bashir, responsável por cinco crimes de guerra e dois contra a humanidade (no mínimo), é o rosto dos 300 mil mortos e dos 2,7 milhões de refugiados do Darfur. Bashir cumpre, no fundo, os quesitos mínimos da psicopatia africana para ser preso e julgado. E, no entanto...
E, no entanto, a realidade intromete-se no mundo das fadas. E obriga qualquer criatura racional a fazer uma pergunta simples, quase ingênua: a ordem de prisão contra Ba-shir protege os verdadeiros interesses dos sudaneses? Ou, pelo contrário, a ordem de prisão significa apenas que Bashir, 65, dificilmente deixará o poder e, pior, sentindo-se um animal acossado, irá agora aumentar a brutalidade contra opositores, reais ou imaginários?
Por favor, não respondam. O próprio Bashir já se encarregou do assunto: momentos depois de o Tribunal Penal Internacional fazer a alegria dos líricos, Bashir expulsava do país várias organizações humanitárias, um belo indício da violência homicida que vem a seguir. E, para que não restassem dúvidas, o ditador ainda apareceu nas ruas de Khartoum, cantando e dançando, ao mesmo tempo em que lançava acusações habituais contra o colonialismo do Ocidente. De fato, não há nada de que um torturador goste mais do que limpar as suas mãos sanguinárias nas águas do colonialismo.
Em outras palavras: não vale de nada lançar uma ordem de prisão sobre um criminoso como Bashir se não existe capacidade prática para prendê-lo. O caso de Milosevic, anteriormente citado, serve para ilustrar essa simplória verdade. Se a Otan não tivesse entrado na ex-Iugoslávia com as suas tropas "imperialistas"; e se o presidente sérvio Kostunica não tivesse capturado e extraditado Milosevic para Haia, não seria por obra e graça do tribunal poético internacional que o "carniceiro de Belgrado" teria enfrentado a Justiça.
Pelo contrário: quando, ainda à solta, Milosevic já desconfiava de que a comunidade internacional não o deixaria impune, isso só serviu para que ele apressasse a sua espantosa campanha de limpeza étnica contra os albaneses do Kosovo.
As nossas fantasias idealistas não nos devem cegar para a realidade. Sem uma força militar capaz de derrubar Bashir, a ordem de detenção do Tribunal Penal Internacional é um seguro de vida para ele e uma certeza de morte para os outros.
E, por mais que isso ofenda o nosso sentido de justiça, pergunto se não teria sido preferível negociar com o ditador uma forma qualquer de imunidade no exílio que permitisse removê-lo do país para sempre e iniciar um processo de reconciliação e paz. Deliro? Não deliro. E conto uma história a respeito: uns anos atrás, durante um jantar universitário, um jovem estudante moçambicano relatava-me alguns episódios cruéis sobre a guerra civil que devastara o seu país. "Foram longos anos de luta", afirmou ele, "que terminaram com uma anistia geral". E acrescentou: "Os meus vizinhos de agora foram os responsáveis pela morte dos meus avós".
A confissão gelou-me. E, num acesso de idealismo, perguntei seriamente como era possível coexistir com velhos inimigos sem ceder à vingança mais básica. A resposta dele calou todas as perguntas. "Prefiro a paz a qualquer vingança." Fazer justiça, às vezes, é escolher o mal menor. E os casos de relativo sucesso no continente africano mostram como a única forma de construir um futuro passa, dolorosamente que seja, pelo esquecimento do passado.

jpcoutinho@folha.com.br


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