São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

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"PAIS E FILHOS"

Conflito de gerações descrito com elegante economia destaca autor dentre os gênios do país no período

Turguêniev apresenta ficção russa à sutileza

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

Na segunda metade do século 19 a Rússia se impôs ao restante da Europa com a energia de sua ficção. Embora o forte do fundador da moderna literatura russa, Aleksander Púchkin (1799-1837), fosse a poesia e esta continuasse vigorosa nas mãos de seus sucessores, as dificuldades de traduzi-la a impediram de exercer qualquer efeito direto sobre os poetas ocidentais. O próprio Púchkin, no entanto, voltara-se no final de sua vida para a narrativa e, então, seu legado não só frutificou de imediato, como logo se tornou também o principal item de exportação cultural do país.
Um dos ápices culturais de uma época, o grande romance russo é geralmente identificado com dois nomes: Dostoiévski (1821-81) e Tolstói (1828-1910). Ambos são habitualmente vistos, com justiça, como representantes máximos de sua arte, se bem que cada qual levando a ficção para um pólo diferente: Dostoiévski em direção à sondagem em profundidade das motivações individuais; Tolstói rumo aos grandes panoramas históricos onde o que importa é a interação das personagens.
Mas nem só dos delírios de Ivan Karamázov ou das batalhas de "Guerra e Paz" se constituiu a ficção oitocentista russa, pois o par de gigantes deixou descoberto todo um território intermediário de ocorrências cotidianas e de pessoas relativamente comuns. E, antes que esse território fosse ocupado pelo insuperável Anton Tchékhov (1860-1904), nenhum outro russo trabalhou tão bem e tão à vontade nele quanto Ivan Turguêniev (1818-83).
Diante da intensidade de seus dois rivais, o tom geral de sua obra é tranqüilo, o ritmo parece lento ou sossegado, as ações e o caráter de seus personagens beiram o trivial. Tudo isso fez dele, aos olhos seja de seus compatriotas, seja dos críticos estrangeiros, o menos russo entre os romancistas de seu país. E, de fato, ele passou a parte mais importante de sua vida adulta na França, onde se tornou amigo das principais personalidades literárias de então (Flaubert, Maupassant etc.).
"Pais e Filhos" (1861) ilustra perfeitamente suas qualidades e o que o distingue de seus conterrâneos. O pouco de ação que o livro contém principia quando, em 1859, concluídos seus estudos, um jovem volta à propriedade de seu pai, um aristocrata, levando o amigo Ievguêni Bazárov, o herói da narrativa, que se considera e é descrito pelo amigo como um "niilista". O termo, como é usado aqui, não tem muito a ver com os sentidos que acumulou depois. O niilista de Turguêniev é um anti-romântico, pragmático e, neste caso, um naturalista amador.
É através de um número restrito de acontecimentos, que incluem um amor frustrado e um duelo, mas sobretudo por meio de diálogos, discussões e devaneios ("Pais e Filhos" não deixa de ser um romance russo) que retrata tanto seus personagens como todo um ambiente social. Ou seja, o que Dostoiévski e Tolstói teriam feito com imensas pinceladas, Turguêniev resume com traços exíguos e sutis. E é por essa economia elegante que determinado conflito entre duas gerações há muito desaparecidas se torna arquetípico.
Talvez soe estranho hoje que um conflito generacional tão pacato tenha, quando a obra foi publicada, gerado escândalo. Isso demonstra, todavia, que nossos bisavós, bons leitores que eram, deduziram que a trivialidade das razões do conflito apontava para o fato indigesto de que, independentemente das causas explícitas, ele tende a ser inevitável ou, em outras palavras, que as gerações sucessivas estão condenadas a nunca realmente se entenderem.


Pais e Filhos
    
Autor: Ivan Turguêniev
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 42 (400 págs.)



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