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"PAIS E FILHOS"
Conflito de gerações descrito com elegante economia destaca autor dentre os gênios do país no período
Turguêniev apresenta ficção russa à sutileza
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
Na segunda metade do século 19 a Rússia se impôs ao
restante da Europa com a energia
de sua ficção. Embora o forte do
fundador da moderna literatura
russa, Aleksander Púchkin (1799-1837), fosse a poesia e esta continuasse vigorosa nas mãos de seus
sucessores, as dificuldades de traduzi-la a impediram de exercer
qualquer efeito direto sobre os
poetas ocidentais. O próprio
Púchkin, no entanto, voltara-se
no final de sua vida para a narrativa e, então, seu legado não só frutificou de imediato, como logo se
tornou também o principal item
de exportação cultural do país.
Um dos ápices culturais de uma
época, o grande romance russo é
geralmente identificado com dois
nomes: Dostoiévski (1821-81) e
Tolstói (1828-1910). Ambos são
habitualmente vistos, com justiça,
como representantes máximos de
sua arte, se bem que cada qual levando a ficção para um pólo diferente: Dostoiévski em direção à
sondagem em profundidade das
motivações individuais; Tolstói
rumo aos grandes panoramas
históricos onde o que importa é a
interação das personagens.
Mas nem só dos delírios de Ivan
Karamázov ou das batalhas de
"Guerra e Paz" se constituiu a ficção oitocentista russa, pois o par
de gigantes deixou descoberto todo um território intermediário de
ocorrências cotidianas e de pessoas relativamente comuns. E, antes que esse território fosse ocupado pelo insuperável Anton Tchékhov (1860-1904), nenhum outro
russo trabalhou tão bem e tão à
vontade nele quanto Ivan Turguêniev (1818-83).
Diante da intensidade de seus
dois rivais, o tom geral de sua
obra é tranqüilo, o ritmo parece
lento ou sossegado, as ações e o
caráter de seus personagens beiram o trivial. Tudo isso fez dele,
aos olhos seja de seus compatriotas, seja dos críticos estrangeiros,
o menos russo entre os romancistas de seu país. E, de fato, ele passou a parte mais importante de
sua vida adulta na França, onde se
tornou amigo das principais personalidades literárias de então
(Flaubert, Maupassant etc.).
"Pais e Filhos" (1861) ilustra
perfeitamente suas qualidades e o
que o distingue de seus conterrâneos. O pouco de ação que o livro
contém principia quando, em
1859, concluídos seus estudos, um
jovem volta à propriedade de seu
pai, um aristocrata, levando o
amigo Ievguêni Bazárov, o herói
da narrativa, que se considera e é
descrito pelo amigo como um
"niilista". O termo, como é usado
aqui, não tem muito a ver com os
sentidos que acumulou depois. O
niilista de Turguêniev é um anti-romântico, pragmático e, neste
caso, um naturalista amador.
É através de um número restrito
de acontecimentos, que incluem
um amor frustrado e um duelo,
mas sobretudo por meio de diálogos, discussões e devaneios ("Pais
e Filhos" não deixa de ser um romance russo) que retrata tanto
seus personagens como todo um
ambiente social. Ou seja, o que
Dostoiévski e Tolstói teriam feito
com imensas pinceladas, Turguêniev resume com traços exíguos e
sutis. E é por essa economia elegante que determinado conflito
entre duas gerações há muito desaparecidas se torna arquetípico.
Talvez soe estranho hoje que
um conflito generacional tão pacato tenha, quando a obra foi publicada, gerado escândalo. Isso
demonstra, todavia, que nossos
bisavós, bons leitores que eram,
deduziram que a trivialidade das
razões do conflito apontava para
o fato indigesto de que, independentemente das causas explícitas,
ele tende a ser inevitável ou, em
outras palavras, que as gerações
sucessivas estão condenadas a
nunca realmente se entenderem.
Pais e Filhos
Autor: Ivan Turguêniev
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 42 (400 págs.)
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