São Paulo, terça-feira, 10 de abril de 2007

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CECILIA GIANNETTI

De balas, rugas e músculos

Não sei se ele ri de nervoso ou se simplesmente não se importa mais. As risadas contrastam com as rugas

Do outro lado da rua, ele segura um copo de cerveja, conversa com um grupo de caras mais jovens. São dos que malham todos os dias. Ele já foi desses, dá pra ver.
Alguém enche seu copo e ele abre um sorriso, que lhe rasga a pele em sulcos e rugas prematuras nos cantos dos olhos amarrotados. Há fios brancos metidos entre os cabelos castanhos desarrumados. Apesar do ar de estrada precocemente aberta à meia-idade, talvez a mesma dos outros, talvez só pareça mais velho.
Ele não vê que é observado de uma mesa do outro lado da rua, mas ouvimos todos juntos os tiros que irrompem no morro próximo. Não sei se ele ri de nervoso ou simplesmente não se importa mais. As risadas contrastam com as rugas, são risadas de moleque, com dentes nicotinados. Ele não liga mesmo e abre mais o sorriso, sufocando-o em seguida com goles de cerveja. Vincos perto dos olhos, ao redor da boca, contornando o nariz grande e caído, que tromba vertiginosamente, cai mais e mais a cada dia, aposto, como as pontas das orelhas de seu avô.
Eu me distraio do tiroteio inventando sozinha legendas pro filme do homem na calçada oposta. A conversa nesta mesa está choca -levantem aqui um assunto melhor que mapear os precipícios do homem gasto, e volto a falar com vocês.
O ambiente já se acomodou aos tiros, que param e recomeçam a toda hora. Alguém saca um livro da bolsa e o abre sobre a mesa, ao lado das batatas fritas. Drummond confessou, no seu "Favelário Nacional", em 1984, antes da preocupação com o politicamente correto, que
"Tua dignidade é teu isolamento por cima da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e baseado,
tuas perambeiras, templos de Mamalapunam
em suspensão carioca.
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.
Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade."
Coisa dura de se dizer/pensar hoje, pensamos e comentamos à lembrança do poema, omissos em mui forçada ingenuidade urbana. E mais: quem é que anda com poesia dentro da bolsa esses dias?
Observo a matilha de fortões. Calculo que, se bebem a noite inteira e se mantêm em forma, é porque dormem durante toda a manhã e malham toda a tarde, até chegar a noite -quando começam a beber outra vez. Não trabalham? Calculo, levianamente, que já foi desse tipo. Agora, apenas perpetua à noite seu processo de amarfanhamento a olhos vistos, às vezes uma corrida no calçadão da praia onde descansa, num banco, o Drummond de bronze.
Olhos pregados e traços mastigados pelo conjunto de vícios aprendidos e mantidos em bando. Eu me distraio da política da mesa. Homem prematuramente gasto, seu coração deve ser liso.


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