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CECILIA GIANNETTI
De balas, rugas e músculos
Não sei se ele ri de nervoso
ou se simplesmente não se importa mais. As risadas contrastam com as rugas
Do outro lado da rua, ele segura
um copo de cerveja, conversa
com um grupo de caras mais
jovens. São dos que malham todos
os dias. Ele já foi desses, dá pra ver.
Alguém enche seu copo e ele abre
um sorriso, que lhe rasga a pele em
sulcos e rugas prematuras nos cantos dos olhos amarrotados. Há fios
brancos metidos entre os cabelos
castanhos desarrumados. Apesar do
ar de estrada precocemente aberta à
meia-idade, talvez a mesma dos outros, talvez só pareça mais velho.
Ele não vê que é observado de uma
mesa do outro lado da rua, mas ouvimos todos juntos os tiros que irrompem no morro próximo. Não sei se
ele ri de nervoso ou simplesmente
não se importa mais. As risadas contrastam com as rugas, são risadas de
moleque, com dentes nicotinados.
Ele não liga mesmo e abre mais o
sorriso, sufocando-o em seguida
com goles de cerveja. Vincos perto
dos olhos, ao redor da boca, contornando o nariz grande e caído, que
tromba vertiginosamente, cai mais e
mais a cada dia, aposto, como as
pontas das orelhas de seu avô.
Eu me distraio do tiroteio inventando sozinha legendas pro filme do
homem na calçada oposta. A conversa nesta mesa está choca -levantem aqui um assunto melhor que
mapear os precipícios do homem
gasto, e volto a falar com vocês.
O ambiente já se acomodou aos tiros, que param e recomeçam a toda
hora. Alguém saca um livro da bolsa
e o abre sobre a mesa, ao lado das batatas fritas. Drummond confessou,
no seu "Favelário Nacional", em
1984, antes da preocupação com o
politicamente correto, que
"Tua dignidade é teu isolamento
por cima da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e baseado,
tuas perambeiras, templos de Mamalapunam
em suspensão carioca.
Tenho medo. Medo de ti, sem te
conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.
Medo: não de tua lâmina nem de
teu revólver
nem de tua manha nem de teu
olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade."
Coisa dura de se dizer/pensar hoje, pensamos e comentamos à lembrança do poema, omissos em mui
forçada ingenuidade urbana. E mais:
quem é que anda com poesia dentro
da bolsa esses dias?
Observo a matilha de fortões. Calculo que, se bebem a noite inteira e
se mantêm em forma, é porque dormem durante toda a manhã e malham toda a tarde, até chegar a noite
-quando começam a beber outra
vez. Não trabalham? Calculo, levianamente, que já foi desse tipo. Agora, apenas perpetua à noite seu processo de amarfanhamento a olhos
vistos, às vezes uma corrida no calçadão da praia onde descansa, num
banco, o Drummond de bronze.
Olhos pregados e traços mastigados pelo conjunto de vícios aprendidos e mantidos em bando. Eu me
distraio da política da mesa. Homem
prematuramente gasto, seu coração
deve ser liso.
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