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"Democracia racial" rima com "homem cordial"
CAETANO VELOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Li "Raízes do Brasil" e "Casa-Grande & Senzala" há muito
tempo. Não li Caio Prado. Sou
um lírico. Economia é a ciência
de tudo o que não me interessava espontaneamente desde a
meninice. Li Paulo Prado e seu
belo livro menor sobre as três
raças tristes. Quando tomei conhecimento da obra de Joaquim Nabuco, passei a considerar que ele tinha abordado o essencial do que está em Gilberto
Freyre. Muito antes, muito melhor, muito mais no ponto.
É claro que isso se deveu em
parte ao entusiasmo da descoberta. Mas ainda acho que em
"O Abolicionismo" e "Minha
Formação" há mais decisões
intelectuais relevantes sobre a
casa grande e a senzala do que
nos livros de Freyre. É que
Freyre sempre me agradou em
cheio. Nunca achei que ele negligenciasse os aspectos horrendos da nossa formação.
Ele é também um crítico duro. Não é porque facilita as coisas para nós que suas idéias
sensualizadas sobre nossa originalidade tropical e lusa -nossa exuberância mestiça- são
rejeitadas; é antes por elas trazerem a sugestão de uma grande responsabilidade. Preferimos crer que o que nos distingue é a incapacidade -e julgar
tudo por esquemas "universais" como luta de classes, infra-estrutura econômica, injustiça social.
Pessoalmente tendo a gastar
mais meu tempo pensando na
afirmação de que, dos três povos que nos formaram, o menos
lúbrico é o negro. É por ser assim tão a favor de Freyre que
pude (ou precisei) achar Nabuco maior.
Lentidão íntima
Agora, "Raízes do Brasil" é
um livro mais equilibrado e sóbrio do que os de Freyre. É também um texto estilisticamente
mais fluido e homogêneo -e
mesmo mais refinado (embora
isso seja mais delicioso em "Visão do Paraíso"). Sérgio Buarque tem um ritmo lento, de
uma lentidão nobre, mas agradavelmente íntima, como uma
voz suave, que contrasta com a
fala retórica e disparada de Gilberto Freyre.
Sem nunca ter escrito a expressão "democracia racial",
Freyre é freqüentemente xingado por causa dela. Eu, que
adoro esse mito, acho que se
presta uma homenagem a
Freyre ao atribuir-lhe a invenção. Já o "homem cordial" é um
conceito de Sérgio Buarque.
Desde sempre ambíguo, foi
defendido pelo próprio autor
contra a interpretação popular
que veio a ganhar. Essa interpretação, no entanto, não é desprezível. Jorge Luis Borges, falando dos argentinos, também
disse que "somos indivíduos,
não cidadãos. Para nós contam
mais as relações de amizade
que as leis".
Bob Broughton, um inglês
adorável que foi presidente da
Shell no Brasil por muitos anos,
voltou aqui, depois de já estar
na Inglaterra aposentado, para
tratar de uns eventos culturais
de brasileiros em Londres.
Contando-me, em Salvador, sobre o andamento das negociações, ele me disse: "Você sabe,
tenho que esperar para falar
com Fulano, que é amigo de Sicrano: aqui no Brasil tudo se resolve assim". Comentei: "Que
vergonha". E ele: "Não. Que
maravilha! Você não sabe o valor que tem para mim a posição
em que os brasileiros colocam a
amizade".
Então eu, que, no último Carnaval, cantei em uníssono com
(e abraçado a) Ariano Suassuna
para dezenas de milhares de
pessoas no Marco Zero, priorizo a constatação: "Democracia
racial" rima com "homem cordial". Não é uma solução. Mas
vou pôr isso na letra de uma
música.
Caetano Veloso é cantor e compositor baiano,
autor de "Verdade Tropical" (1997) e "O Mundo
Não É Chato" (2005), ambos pela Companhia
das Letras
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