São Paulo, segunda-feira, 10 de julho de 2006

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GUILHERME WISNIK

Multiplicação sem promessa

"Proletariado informal" atraído pela religião é novidade em modelo urbanístico contemporâneo

AS MEGALÓPOLES e conurbações são fenômenos conhecidos do processo de crescimento urbano das últimas décadas, e, de certa forma, já previstos há algum tempo. Tóquio, por exemplo, ao ultrapassar a marca de 20 milhões de habitantes há dez anos, já abrigava uma população equivalente à do planeta inteiro na época da Revolução Francesa. Dados como esse são impressionantes e integram o estudo Planeta de Favelas, do urbanista e pesquisador americano Mike Davis, comentado aqui na semana passada.
Contudo, observa Davis, há componentes da situação contemporânea que destoam das previsões clássicas, e que, portanto, são fenômenos novos. Um deles é o fato de que o maior crescimento populacional atual e futuro ocorre em cidades médias e não mais em metrópoles gigantescas no estilo "supernova". É que a atual "urbanização sem desenvolvimento" não é mais atraída pela oferta de empregos em centros industriais tradicionais. Com as políticas impostas pelo FMI de suspensão dos subsídios aos produtores rurais, expostos assim ao mercado global de commodities dominado pelo agronegócio, houve uma migração forçada do campo para as cidades, apesar da queda da oferta de emprego nestas, e do crescimento negativo das suas economias.
Surgem, assim, cidades inteiramente favelizadas e dominadas pelo trabalho informal, constituindo um "proletariado informal" que, segundo Davis, é "a classe social de crescimento mais rápido e sem precedentes da Terra". A novidade interpretativa, no caso, está no deslocamento da análise marxista de evolução histórica, segundo a qual o crescimento urbano mundial seguiria os passos industrializantes de Manchester ou Chicago. Aquele modelo, que foi válido ainda para São Paulo, não dá conta do que ocorre hoje em Lima (Peru), Kinshasa (Congo) ou Daca (Bangladesh), por exemplo.
Esse "proletariado informal", não previsto pelo marxismo, não constitui um exército de reserva pronto a ser incorporado pelo mercado de trabalho. Por isso a favela, de acordo com Davis, "desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resíduo global sem o poder econômico estratégico da mão-de-obra socializada, mas maciçamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos".
Em tal contexto, Marx cedeu o palco histórico a Maomé e Jesus Cristo. Pois se a urbanização moderna laicizou a classe trabalhadora, a favelização pós-industrial recolocou Deus no centro dos acontecimentos, com o crescimento do islamismo populista e do cristianismo pentecostal. Sendo que este último, infinitamente mais recente, cresceu no solo da favela como reação a essa urbanização explosiva, constituindo "o maior movimento auto-organizado dos pobres urbanos do planeta". Contudo, trata-se de uma organização sem perspectiva de emancipação terrena. Sua premissa básica é desencantada e regressiva, embora realista: o mundo urbano é corrupto e impossível de reformar. No horizonte, nenhuma promessa de revolução. Apenas resignação.


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