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livros
Traumas de infância marcam "O Livro"
Pai austero e mãe depressiva inspiraram personagens; obra de Harper Lee gerou reações em sua cidade natal
Desde "O Sol É para Todos", ela não lançou romances; amigos dizem que o sucesso assustou a escritora
DO "DAILY MAIL"
"O Sol É para Todos" é ostensivamente um thriller de
tribunal. Nele, o pai da menina Scout, o advogado compassivo Atticus Finch, defende um negro injustamente
acusado de estuprar uma
mulher branca.
Os confidentes de Harper
Lee dizem que ela baseou-se
em segredos familiares profundamente dolorosos para
criar os seus protagonistas.
Ademais, suas posições
raciais liberais eram extremamente malvistas no Sul.
Muitas pessoas de sua própria família ficaram insatisfeitas com o tom do livro.
"Há muito de Nelle [apelido de Harper] ali", disse
George Thomas Jones, 87
anos, empresário aposentado que conhece Harper e sua
família desde que ela era menina. "Dizem que a publicidade a converteu em reclusa,
mas não foi isso que estragou
sua vida. Nelle nunca foi
realmente feliz."
Jones disse que o pai de
Harper, Amasa Coleman Lee
-ex-editor de jornal, advogado e senador que foi evidentemente o modelo sobre
o qual ela baseou o personagem Finch- era "um homem
realmente educado, mas não
demonstrava muito afeto".
Em um episódio que antevê o herói fortemente moral
Atticus, o pai de Harper defendeu dois negros acusados
de homicídio em um caso
que ficou célebre em 1919.
Depois de serem condenados e enforcados, ele nunca
mais praticou o direito. Diferentemente do fictício Finch,
contudo, Amasa Lee era segregacionista convicto.
FANTASMA MATERNO
No romance, Scout convive com o medo suscitado por
um "fantasma malévolo",
um vizinho perturbado chamado Boo Radley, que, no
fim, salva sua vida.
Embora esteja claro que
ele foi baseado em parte em
um vizinho, na realidade era
a mãe de Harper, Frances,
que estava na origem de muito medo e infelicidade.
Vizinhos recordaram que
às vezes Frances gritava invectivas sem sentido a quem
passava.
A mãe de Lee sofria de depressão e tinha mudanças de
humor violentas. Amigos da
família dizem que em duas
ocasiões ela teria tentado
afogar sua filha na banheira.
Possivelmente em consequência disso, Harper era
vista como uma criança
agressiva que não pensava
duas vezes antes de bater em
quem a irritasse.
O biógrafo de Harper, o
acadêmico Charles Shields,
disse que Frances descendia
de donos de escravos que tinham uma fazenda de algodão nos arredores de Mon-
roeville, onde construíram
uma grandiosa casa.
Em sua juventude, Frances era considerada uma pianista brilhante, mas, na época em que Harper nasceu, em
1926, ela já parecia ter perdido interesse pela vida devido
à depressão.
A irmã mais velha de Harper, Alice -que, aos 98 anos,
ainda trabalha como advogada em Monroeville-, disse:
"Minha mãe era uma pessoa
altamente nervosa, mas isso
não era problema. Não havia
nada de anormal."
Alice ainda mantém contato estreito com Harper e a
ajuda a cuidar de seus assuntos financeiros. Perguntei a
ela se a irmã alguma vez lamentou ter escrito o livro.
"Acho que ela não lamenta
nada", respondeu Alice,
franzindo o cenho. "Mas só o
mencionamos em relação a
questões de dinheiro."
AMIZADE COM CAPOTE
Quando jovem, Harper sonhou em tornar-se advogada
como seu pai e sua irmã. Mas
foi desviada desse caminho
por sua amizade vitalícia
com Truman Capote, o autor
de "Bonequinha de Luxo" e
"A Sangue Frio", que foi seu
vizinho de infância, mais ou
menos como Dill, o melhor
amigo de Scout em "O Sol É
para Todos".
O jovem Capote já tinha
começado a escrever contos.
"Convenci Harper de que ela
também deveria escrever",
ele comentou mais tarde.
"Ela não queria realmente,
mas eu a fiz cumprir o que
prometeu."
Escrever não era fácil para
Harper. Às vezes ela trabalhava 12 horas para concluir
uma página apenas. Mas foi
sua única vida.
Seus cortes de cabelo masculinos e sua aversão à maquiagem levaram a especulações de que ela seria lésbica.
Mas Shields acredita que ela
era apenas tímida e que, como Charlotte Bronte, viveu
uma paixão não correspondida por um homem casado,
seu agente, Maurice Crain.
Na faculdade, ela escreveu
contos sobre preconceito racial e, em meados dos anos
1950, mudou-se para Nova
York. Ali ela alugou um apartamento barato e tentou ganhar dinheiro suficiente para
poder escrever, trabalhando
como balconista de reservas
da companhia aérea Boac.
"O Sol É para Todos" começou como uma série de
anedotas baseadas em sua
infância. Mas Harper era tão
ingênua ou tão traumatizada
que, ao que parece, só reconheceu a natureza semiautobiográfica do livro após a sua
publicação.
Quando ele se tornou best-seller, houve críticas acirradas em Monroeville. "Reconheceram no livro pessoas
conhecidas", disse Shields.
"Ela passou a receber cartas
agressivas." Entre os críticos
estava sua outra irmã, Louise. "Ela achou que era roupa
suja demais lavada em público", acrescentou o biógrafo.
LIVRO ROUBADO
Num primeiro momento
falou-se em mais livros. No
início dos anos 1960, Harper
disse a seu agente que tinha
começado a escrever outro
romance, cujo título provisório seria "The Long Goodbye". O livro nunca saiu. De
acordo com Alice, o manuscrito teria sido roubado.
Outros, porém, dizem que
em meados dos anos 1960
Harper estava bebendo excessivamente. Shields comentou: "Acho que ela bebia
para superar sua timidez e
porque seu grupo de apoio,
que sempre tinha sido pequeno, estava se desfazendo."
Truman Capote tinha partido em um mar de álcool e
drogas, enquanto seu editor,
Tay Hohoff, havia morrido
repentinamente.
Uma amiga de Harper disse: "Nelle não era alcoólatra,
mas gostava de tomar um
drinque. Ela não fazia isso ostensivamente, mas Monroeville fica no Cinturão da Bíblia, e Alice, a irmã de Nelle,
não aprovava. Nelle deixou
de beber, finalmente, quando sua saúde começou a decair. Ela só decidiu mudar-se
de volta a Monroeville depois
de sofrer um derrame uns
cinco anos atrás."
Num primeiro momento
Harper foi viver com Alice,
mas agora, depois de sofrer
outros problemas de saúde,
ela vive em um asilo com
atendimento médico. Apesar
de sua doença -ou, possivelmente, devido a ela-, Harper parece finalmente estar
em paz consigo mesma. Mas
"O Livro" ainda é tabu.
CONTRA PRECONCEITOS
Muitas pessoas veem Harper Lee como tendo exercido
papel importante na mudança radical de atitudes ocorrida no Sul profundo -incluindo Monroeville.
Mesmo hoje, contudo, os
preconceitos antigos não
morreram. "Temos ótimos
criados de cor", me disse um
contemporâneo de Harper,
enquanto três empregadas
negras corriam em sua casa.
Fiquei sabendo, também,
que muitas crianças brancas
ainda estudam em "academias segregadas" particulares criadas após o governo federal ter tornado obrigatória
a integração racial nas escolas públicas.
Mas no fim de semana do
50º aniversário, crianças
brancas e negras vão ficar lado a lado numa maratona de
leitura do livro.
Harper foi convidada a
juntar-se a elas, mas amigos
dizem que, mesmo hoje, ouvir as palavras lidas em voz
alta lhe traria de volta memórias dolorosas demais.
Em vez de novamente enfrentar os fantasmas de seu
passado, Harper pretende
passar o aniversário em seu
apartamento.
Ali, com sua escrivaninha,
seu computador e sua poltrona, ela poderá refletir sobre
as transformações que ajudou a operar no Sul, sobre
seu romance atemporal e o
trauma que deu origem a ele.
(SHARON CHURCHER)
Tradução de CLARA ALLAIN
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