São Paulo, sábado, 10 de julho de 2010

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Traumas de infância marcam "O Livro"

Pai austero e mãe depressiva inspiraram personagens; obra de Harper Lee gerou reações em sua cidade natal

Desde "O Sol É para Todos", ela não lançou romances; amigos dizem que o sucesso assustou a escritora

DO "DAILY MAIL"

"O Sol É para Todos" é ostensivamente um thriller de tribunal. Nele, o pai da menina Scout, o advogado compassivo Atticus Finch, defende um negro injustamente acusado de estuprar uma mulher branca.
Os confidentes de Harper Lee dizem que ela baseou-se em segredos familiares profundamente dolorosos para criar os seus protagonistas.
Ademais, suas posições raciais liberais eram extremamente malvistas no Sul. Muitas pessoas de sua própria família ficaram insatisfeitas com o tom do livro.
"Há muito de Nelle [apelido de Harper] ali", disse George Thomas Jones, 87 anos, empresário aposentado que conhece Harper e sua família desde que ela era menina. "Dizem que a publicidade a converteu em reclusa, mas não foi isso que estragou sua vida. Nelle nunca foi realmente feliz."
Jones disse que o pai de Harper, Amasa Coleman Lee -ex-editor de jornal, advogado e senador que foi evidentemente o modelo sobre o qual ela baseou o personagem Finch- era "um homem realmente educado, mas não demonstrava muito afeto".
Em um episódio que antevê o herói fortemente moral Atticus, o pai de Harper defendeu dois negros acusados de homicídio em um caso que ficou célebre em 1919.
Depois de serem condenados e enforcados, ele nunca mais praticou o direito. Diferentemente do fictício Finch, contudo, Amasa Lee era segregacionista convicto.

FANTASMA MATERNO
No romance, Scout convive com o medo suscitado por um "fantasma malévolo", um vizinho perturbado chamado Boo Radley, que, no fim, salva sua vida.
Embora esteja claro que ele foi baseado em parte em um vizinho, na realidade era a mãe de Harper, Frances, que estava na origem de muito medo e infelicidade.
Vizinhos recordaram que às vezes Frances gritava invectivas sem sentido a quem passava.
A mãe de Lee sofria de depressão e tinha mudanças de humor violentas. Amigos da família dizem que em duas ocasiões ela teria tentado afogar sua filha na banheira.
Possivelmente em consequência disso, Harper era vista como uma criança agressiva que não pensava duas vezes antes de bater em quem a irritasse.
O biógrafo de Harper, o acadêmico Charles Shields, disse que Frances descendia de donos de escravos que tinham uma fazenda de algodão nos arredores de Mon- roeville, onde construíram uma grandiosa casa.
Em sua juventude, Frances era considerada uma pianista brilhante, mas, na época em que Harper nasceu, em 1926, ela já parecia ter perdido interesse pela vida devido à depressão.
A irmã mais velha de Harper, Alice -que, aos 98 anos, ainda trabalha como advogada em Monroeville-, disse: "Minha mãe era uma pessoa altamente nervosa, mas isso não era problema. Não havia nada de anormal."
Alice ainda mantém contato estreito com Harper e a ajuda a cuidar de seus assuntos financeiros. Perguntei a ela se a irmã alguma vez lamentou ter escrito o livro.
"Acho que ela não lamenta nada", respondeu Alice, franzindo o cenho. "Mas só o mencionamos em relação a questões de dinheiro."

AMIZADE COM CAPOTE
Quando jovem, Harper sonhou em tornar-se advogada como seu pai e sua irmã. Mas foi desviada desse caminho por sua amizade vitalícia com Truman Capote, o autor de "Bonequinha de Luxo" e "A Sangue Frio", que foi seu vizinho de infância, mais ou menos como Dill, o melhor amigo de Scout em "O Sol É para Todos".
O jovem Capote já tinha começado a escrever contos. "Convenci Harper de que ela também deveria escrever", ele comentou mais tarde. "Ela não queria realmente, mas eu a fiz cumprir o que prometeu."
Escrever não era fácil para Harper. Às vezes ela trabalhava 12 horas para concluir uma página apenas. Mas foi sua única vida.
Seus cortes de cabelo masculinos e sua aversão à maquiagem levaram a especulações de que ela seria lésbica. Mas Shields acredita que ela era apenas tímida e que, como Charlotte Bronte, viveu uma paixão não correspondida por um homem casado, seu agente, Maurice Crain.
Na faculdade, ela escreveu contos sobre preconceito racial e, em meados dos anos 1950, mudou-se para Nova York. Ali ela alugou um apartamento barato e tentou ganhar dinheiro suficiente para poder escrever, trabalhando como balconista de reservas da companhia aérea Boac.
"O Sol É para Todos" começou como uma série de anedotas baseadas em sua infância. Mas Harper era tão ingênua ou tão traumatizada que, ao que parece, só reconheceu a natureza semiautobiográfica do livro após a sua publicação.
Quando ele se tornou best-seller, houve críticas acirradas em Monroeville. "Reconheceram no livro pessoas conhecidas", disse Shields.
"Ela passou a receber cartas agressivas." Entre os críticos estava sua outra irmã, Louise. "Ela achou que era roupa suja demais lavada em público", acrescentou o biógrafo.

LIVRO ROUBADO
Num primeiro momento falou-se em mais livros. No início dos anos 1960, Harper disse a seu agente que tinha começado a escrever outro romance, cujo título provisório seria "The Long Goodbye". O livro nunca saiu. De acordo com Alice, o manuscrito teria sido roubado.
Outros, porém, dizem que em meados dos anos 1960 Harper estava bebendo excessivamente. Shields comentou: "Acho que ela bebia para superar sua timidez e porque seu grupo de apoio, que sempre tinha sido pequeno, estava se desfazendo."
Truman Capote tinha partido em um mar de álcool e drogas, enquanto seu editor, Tay Hohoff, havia morrido repentinamente.
Uma amiga de Harper disse: "Nelle não era alcoólatra, mas gostava de tomar um drinque. Ela não fazia isso ostensivamente, mas Monroeville fica no Cinturão da Bíblia, e Alice, a irmã de Nelle, não aprovava. Nelle deixou de beber, finalmente, quando sua saúde começou a decair. Ela só decidiu mudar-se de volta a Monroeville depois de sofrer um derrame uns cinco anos atrás."
Num primeiro momento Harper foi viver com Alice, mas agora, depois de sofrer outros problemas de saúde, ela vive em um asilo com atendimento médico. Apesar de sua doença -ou, possivelmente, devido a ela-, Harper parece finalmente estar em paz consigo mesma. Mas "O Livro" ainda é tabu.

CONTRA PRECONCEITOS
Muitas pessoas veem Harper Lee como tendo exercido papel importante na mudança radical de atitudes ocorrida no Sul profundo -incluindo Monroeville.
Mesmo hoje, contudo, os preconceitos antigos não morreram. "Temos ótimos criados de cor", me disse um contemporâneo de Harper, enquanto três empregadas negras corriam em sua casa.
Fiquei sabendo, também, que muitas crianças brancas ainda estudam em "academias segregadas" particulares criadas após o governo federal ter tornado obrigatória a integração racial nas escolas públicas.
Mas no fim de semana do 50º aniversário, crianças brancas e negras vão ficar lado a lado numa maratona de leitura do livro.
Harper foi convidada a juntar-se a elas, mas amigos dizem que, mesmo hoje, ouvir as palavras lidas em voz alta lhe traria de volta memórias dolorosas demais. Em vez de novamente enfrentar os fantasmas de seu passado, Harper pretende passar o aniversário em seu apartamento.
Ali, com sua escrivaninha, seu computador e sua poltrona, ela poderá refletir sobre as transformações que ajudou a operar no Sul, sobre seu romance atemporal e o trauma que deu origem a ele.
(SHARON CHURCHER)

Tradução de CLARA ALLAIN


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