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CARLOS HEITOR CONY
E desapareceu no turbilhão da galeria
Um lugar-comum , na
crítica de nossa música popular, considera Ary Barroso um
péssimo letrista, na mesma medida em que o coloca entre os nossos
maiores -senão o maior- compositor brasileiro. Deve-se esse
julgamento consensual ao desastroso "coqueiro que dá coco", que
não chegou a prejudicar sua obra
mais famosa, recentemente escolhida por um tribunal de entendidos como a música do século.
Bem verdade que Ary gostava
de coisas assim. Um coqueiro devia dar coco da mesma forma que
ele cantava o "Brasil brasileiro"
-que afinal foi aceito como uma
das melhores definições de nossa
terra e de nossa gente. Seria forçar
a barra situá-lo entre os bons letristas como Noel Rosa, Orestes
Barbosa, Luiz Peixoto, Lamartine
Babo, Chico Buarque, Lupicínio
Rodrigues, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes.
Os melhores versos do imenso
repertório de Ary Barroso ficaram
por conta de Luiz Peixoto e Lamartine Babo, bastando lembrar
as antológicas "Maria" e "No
Rancho Fundo". Mesmo assim, o
compositor mineiro é autor de
uma das melhores letras de nosso
patrimônio popular.
Apesar de nascido em Ubá, deve-se a ele a internacionalização
da Bahia como tema musical, podendo-se mesmo afirmar, como o
faz Ruy Castro, que nem Caymmi
nem a grande geração de baianos
ilustres cantaram e divulgaram a
chamada "boa terra" como Ary o
fez com amplo sucesso, que até
hoje perdura.
Citemos, como exemplos bastantes, "Na Baixa do Sapateiro" e
"Quindins de Iaiá", que correram
o mundo num musical de Walt
Disney com o Pato Donald e Zé
Carioca. Sem esquecer "No Tabuleiro da Baiana", o primeiro diálogo entre o piano erudito e o regional da tradição fuleira (pandeiro, cavaquinho e violão), clássico regravado diversas vezes e
merecedor de versão sinfônica
com a orquestra Boston Pops, arranjo de Morton Gould e regência
de Arthur Fiedler. (A mesma dupla que também daria vestimenta
sinfônica a "Aquarela do Brasil".)
Mas a letra extraordinária a
que me refiro nada tem de sua fase baiana ou patrioteira. Perseguindo um tipo comum de nosso
imaginário popular, o malandro
carioca que tanto comparece em
Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ismael Silva e Chico
Buarque, ele nos deixou o perfil
mais bem-acabado desse cara de
camisa amarela e reco-reco na
mão, que depois do Carnaval só
volta para casa na quarta-feira,
pedindo um copo de água com bicarbonato -um genérico de antigamente, que hoje conhecemos
em versões industrializadas, como o Sonrisal e o Alka-Seltzer.
"Camisa Amarela" corria o risco de se tornar um sucesso datado, pois faz referências a duas
músicas da época em que foi gravada, por sinal, dois clássicos do
Carnaval de todos os tempos: "A
Jardineira" e "Florisbela", sucessos que se tornaram históricos na
voz de Orlando Silva.
Além disso, na sua melhor passagem, cita o "turbilhão da Galeria", que não existe mais, aquele
cruzamento de ruas internas que
formavam o centro do centro do
Carnaval carioca, onde os bondes
da zona sul faziam o retorno que,
mais tarde, com o desaparecimento da Galeria Cruzeiro e do
hotel Avenida, mudou-se para o
ponto terminal no Largo da Carioca, apropriadamente chamado de "o tabuleiro da baiana".
Num certo sentido, havia um
Rio de Janeiro assinado por Ary
Barroso, que comandava o programa de calouros mais famoso
do rádio brasileiro. E nos campos
de futebol alimentava o mito rubro-negro, ajudando a criar não
apenas a torcida, mas a psicologia do torcedor do Flamengo.
Inacreditável como ele conseguia transmitir as partidas de seu
clube preferido. Em momentos
dramáticos, quando ia ser cobrado um pênalti contra o time que
ele amava, Ary avisava a seus ouvintes: "Pênalti contra o Flamengo. Não quero nem olhar!". E não
olhava mesmo. A gaitinha de sopro com que ele fazia a trilha musical do placar, longa e jubilosa
quando o gol era a favor, emitia
um irritado e brevíssimo som, que
mais parecia o apito de um juiz
contrariado. E Ary era o locutor
esportivo de maior audiência em
seu tempo, só mais tarde superado por profissionais que procuravam ser isentos e completos, como
Oduvaldo Cozzi e Luiz Mendes.
Não vou transcrever a letra de
"Camisa Amarela", que já traduzi para o italiano, a pedido de um
colecionador da obra de Ary Barroso, o meu amigo Alfredo, dono
do restaurante homônimo, que
considera Ary mais importante
do que Verdi e Puccini.
Mas sempre que o meu pensamento derrapa, lembro dois versos da letra de Ary. Depois de encontrar na avenida o seu pedaço
de camisa amarela, a mulher
convida-o a voltar para casa em
sua companhia. Exibindo um
sorriso de ironia, o pedaço "desapareceu no turbilhão da Galeria".
É por aí mesmo. Esse sorriso de
ironia e o turbilhão da Galeria
que engole sonhos e metas estão
todos nesse trecho de um samba
do velho Carnaval carioca. Toda
vez que encontro ou penso encontrar o que procuro, o que busco
com algum desespero, sei que haverá um sorriso de ironia antecedendo o sumiço final, a definitiva
perda no imenso, no sempre renovado turbilhão de uma galeria
que não existe mais.
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