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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Popol Vuh e a visão americana
Edição bilíngüe apresenta, pela 1ª vez em português, a repercussão da poesia da criação dos maias-quiché
A PERPLEXIDADE caricata com
que o representante da civilização inca, o Atahualpa da peça de Peter Schaffer "The Royal
Hunt of the Sun" (1964), confronta
Pizarro, o invasor cristão -"Selvagens, nós? Vocês comem o seu
Deus!"- tem sua contraparte necessária em registros menos esquemáticos do episódio da conquista da
América. São testemunhos indígenas, literários e visuais, pouco mais
que ignorados para além dos estudiosos, que fazem pensar quem entrou no calendário de quem a partir
do desastroso, para os nativos, desembarque espanhol.
É o caso da cosmogonia maia-quiché do século 16, o "Popol Vuh", poema que recentemente ganhou cuidadosa edição brasileira, bilíngüe,
organizada pelo americano Gordon
Brotherston, porfessor, especialista
em mito e literatura mesoamericana, e Sérgio Medeiros, poeta, tradutor e professor da UFSC. Escrito na
Guatemala, em resposta à violência
da ocupação do território quiché por
Pedro de Alvarado, em 1524, o "Popol Vuh" narra a sucessão dos tempos desde o silêncio solitário no
"útero do céu", agitado pelo Hu r
Aqan, deus da tormenta e princípio
criador de uma perna só, até chegar
aos "homens de milho", antepassados do povo que até hoje habita a região fronteiriça do México.
Explicação das origens, livro oracular, o texto é também uma peça legal, gênero conhecido como "título",
que serve aos nativos para reivindicar a posse legítima e os direitos sobre o território que ocupavam há
centenas de anos. Das primeiras
tentativas malsucedidas de criar o
homem, as anônimas gentes de barro e de madeira, o poema descreve
os combates heróicos entre a linhagem de aves-ofídios, encarnada na
família de Vuqub Kadix (Sete Papagaios), contra os gêmeos Hun Ah Pu
(Caçador) e X Balam Ke (Jaguar
Veado). A guerra culmina numa dupla descida épica aos infernos para
conter os cruentos Senhores de Xibalba, deuses daquele mundo. Vencedores, os Gêmeos sobem aos céus,
viram constelação, legando à terra
um pé de milho que gera os maias-quiché.
Ponte entre mito e história, os heróis do poema são "tricksters", exercendo sua astúcia muitas vezes na
modesta esfera doméstica. A descida infeliz de Vuqub Kadix ao reino
subterrâneo, ecoada pela decisiva e
bem-sucedida expedição dos Gêmeos, por exemplo, é motivada pelo
que lembra uma briga de condomínio: os Senhores de Xibalba, vizinhos de baixo, ficam incomodados
com o barulho provocado pelo ritual
do jogo de bola (de borracha, típica
do Novo Mundo, e ocasionalmente
substituída por cabeças) no chão.
A edição criteriosa do "Popol
Vuh" apresenta, pela primeira vez
em português, um pouco das razões
da enorme repercussão moderna
desta poesia da criação que encantou Miguel Ángel Astúrias, Alejo
Carpentier, Jorge Luis Borges e o
músico de vanguarda Edgar Varèse.
Também somos homens de milho.
POPOL VUH
Autor: Gordon Brotherston e Sérgio Medeiros (org.)
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 26 (480 págs.)
Avaliação: ótimo
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