São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Popol Vuh e a visão americana

Edição bilíngüe apresenta, pela 1ª vez em português, a repercussão da poesia da criação dos maias-quiché A PERPLEXIDADE caricata com que o representante da civilização inca, o Atahualpa da peça de Peter Schaffer "The Royal Hunt of the Sun" (1964), confronta Pizarro, o invasor cristão -"Selvagens, nós? Vocês comem o seu Deus!"- tem sua contraparte necessária em registros menos esquemáticos do episódio da conquista da América. São testemunhos indígenas, literários e visuais, pouco mais que ignorados para além dos estudiosos, que fazem pensar quem entrou no calendário de quem a partir do desastroso, para os nativos, desembarque espanhol.
É o caso da cosmogonia maia-quiché do século 16, o "Popol Vuh", poema que recentemente ganhou cuidadosa edição brasileira, bilíngüe, organizada pelo americano Gordon Brotherston, porfessor, especialista em mito e literatura mesoamericana, e Sérgio Medeiros, poeta, tradutor e professor da UFSC. Escrito na Guatemala, em resposta à violência da ocupação do território quiché por Pedro de Alvarado, em 1524, o "Popol Vuh" narra a sucessão dos tempos desde o silêncio solitário no "útero do céu", agitado pelo Hu r Aqan, deus da tormenta e princípio criador de uma perna só, até chegar aos "homens de milho", antepassados do povo que até hoje habita a região fronteiriça do México.
Explicação das origens, livro oracular, o texto é também uma peça legal, gênero conhecido como "título", que serve aos nativos para reivindicar a posse legítima e os direitos sobre o território que ocupavam há centenas de anos. Das primeiras tentativas malsucedidas de criar o homem, as anônimas gentes de barro e de madeira, o poema descreve os combates heróicos entre a linhagem de aves-ofídios, encarnada na família de Vuqub Kadix (Sete Papagaios), contra os gêmeos Hun Ah Pu (Caçador) e X Balam Ke (Jaguar Veado). A guerra culmina numa dupla descida épica aos infernos para conter os cruentos Senhores de Xibalba, deuses daquele mundo. Vencedores, os Gêmeos sobem aos céus, viram constelação, legando à terra um pé de milho que gera os maias-quiché.
Ponte entre mito e história, os heróis do poema são "tricksters", exercendo sua astúcia muitas vezes na modesta esfera doméstica. A descida infeliz de Vuqub Kadix ao reino subterrâneo, ecoada pela decisiva e bem-sucedida expedição dos Gêmeos, por exemplo, é motivada pelo que lembra uma briga de condomínio: os Senhores de Xibalba, vizinhos de baixo, ficam incomodados com o barulho provocado pelo ritual do jogo de bola (de borracha, típica do Novo Mundo, e ocasionalmente substituída por cabeças) no chão.
A edição criteriosa do "Popol Vuh" apresenta, pela primeira vez em português, um pouco das razões da enorme repercussão moderna desta poesia da criação que encantou Miguel Ángel Astúrias, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges e o músico de vanguarda Edgar Varèse. Também somos homens de milho.


POPOL VUH
Autor:
Gordon Brotherston e Sérgio Medeiros (org.)
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 26 (480 págs.)
Avaliação: ótimo



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