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DRAUZIO VARELLA
A meus colegas médicos
Enquanto as mulheres com
formação universitária têm
em média 1,4 filho, as que vivem
abaixo da linha de pobreza começam a tê-los na adolescência e
não param mais. Existe modelo
mais perverso?
Nós, médicos, conhecemos de
perto essa realidade. Somos testemunhas da falta de anticoncepcionais nos postos do SUS e do
calvário que as mães de muitos filhos percorrem na vã esperança
de colocar DIU ou laquear as
trompas.
Somos nós os responsáveis por
esse descalabro?
Não, os principais culpados são
os governantes que controlam as
verbas públicas e definem prioridades e o poder de intimidação
que a cúpula da Igreja Católica
exerce sobre eles. Quando as autoridades eclesiásticas condenam
o uso de qualquer anticoncepcional que não seja a obsoleta "tabelinha", para os políticos é mais
prudente esquecer essa história de
planejamento familiar, coisa de
gente pobre, uma vez que os mais
abastados compram pílulas na
farmácia, colocam DIU em nossos
consultórios, fazem laqueadura e
vasectomia nos hospitais particulares.
Embora sejam os maiores culpados, justiça seja feita, eles não
são os únicos: a sociedade contribui com o silêncio. Parece que
ninguém vê a molecada equilibrando bolinha nos faróis, as
adolescentes grávidas da periferia, o número de crianças nas favelas. Somos cegos ou avestruzes?
Acabo de fazer uma série para a
TV sobre o tema da natalidade,
que me obrigou a viajar pelo país,
visitar postos de saúde, conversar
com colegas, autoridades e com
muitas mulheres que dependem
dos serviços do SUS. Fiquei horrorizado: nenhuma área da saúde
pública é mais desprezada do que
a da saúde reprodutiva da mulher! E é nesse ponto que entra a
nossa responsabilidade.
Há colegas nossos nas linhas de
frente que, apesar dos salários
baixos e das condições precárias
em que trabalham, conduzem
programas de distribuição de anticoncepcionais, centros de orientação sexual para adolescentes e
fazem o possível para agilizar a
burocracia que inviabiliza esterilizações cirúrgicas.
Mas eles são poucos. Infelizmente, a maioria evita o envolvimento com o assunto e, assim,
contribui para afunilar o gargalo
que dificulta o acesso à contracepção.
Vou dar o exemplo da vasectomia e da laqueadura, procedimentos regulamentados pela lei
federal 9.263, de janeiro de 1996,
que raríssimos colegas conhecem,
mas que garante o direito à cirurgia pelo SUS no caso de "homens
e mulheres com capacidade civil
plena e maiores de 25 anos de
idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos...", desde que observados alguns requisitos legais.
Sabemos que, por falta de leitos
públicos, entre a internação de
uma mulher com um tumor uterino e outra para laqueadura o
médico é forçado a escolher a primeira. É evidente que não me refiro a esses casos, mas àqueles em
que nossa boa vontade é fator decisivo. Quantas vezes conseguimos resolver problemas dos pacientes nas condições mais adversas graças a nosso empenho pessoal?
A mãe de sete filhos aos 30 anos,
que preenche todos os requisitos
para a laqueadura e que espera
anos sem ser chamada, quando
tem a felicidade de ver o médico,
muitas vezes ouve que ainda é jovem, que irá se arrepender, que o
marido poderá morrer e ela casar
com um rapaz sem filhos. A regra
é fazer o possível para demovê-la
da intenção e não mover uma palha para agilizar a paquidérmica
burocracia dos hospitais públicos.
Isso, quando não lhe é dito ser
proibido fazer laqueadura pelo
SUS, argumento que os inescrupulosos utilizam para cobrar o
procedimento "por fora".
O desconhecimento generalizado da existência de uma lei federal que trata do planejamento familiar não enobrece nossa profissão. Por lei, todas as brasileiras
em idade reprodutiva têm o direito de receber anticoncepcionais
de graça pelo SUS. Isso inclui meninas de 11 anos que menstruaram pela primeira vez; mulheres e
homens maiores de 25 anos ou
com pelo menos dois filhos vivos,
que optaram por laqueadura ou
vasectomia.
A justificativa de que o médico
poderá enfrentar processos em caso de arrependimento não procede. Ser processado por acatar a
lei? Nesse caso, correriam mais
risco as esterilizações livremente
realizadas em pacientes particulares, estes sim, com condições financeiras para pagar advogados.
As vozes paralisantes dos esquerdistas de porta de botequim,
que interpretam a defesa do acesso universal à contracepção como
tentativa de acabar com a pobreza impedindo o nascimento de
pobres, bem como as imposições
medievais da igreja não podem
nos intimidar. Os próprios padres, quando em contato com a
miséria de seus paroquianos, só
não pregam abertamente a contracepção por impedimentos hierárquicos. Contrária a ela é a cúpula dirigente, há muito apartada de seus rebanhos, a mesma
que comete o crime continuado
de condenar o uso de camisinha
num mundo em que 40 milhões
de pessoas carregam o vírus da
Aids nas secreções sexuais.
Sabedores de que muitos de
nossos governantes são os primeiros a burlar as leis, nós, médicos,
devemos cobrar deles a aplicação
da lei do planejamento familiar.
Apesar do aviltamento da profissão, ainda dispomos de algum poder: chefiamos postos de saúde,
dirigimos hospitais, ocupamos secretarias municipais e estaduais e
cargos importantes no Ministério
da Saúde.
Se não esquecermos que a função primordial da medicina é aliviar o sofrimento humano, poderemos dar um exemplo à sociedade ao contribuir, de fato, para assegurar às pessoas mais pobres o
direito de planejar o tamanho de
suas famílias. Exatamente como
fazemos com as nossas.
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