São Paulo, quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

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NINA HORTA

Geladeira vazia e produtos da terra

Não há o que me deixe mais feliz do que ver a geladeira vazia e perto as coisas da terra

NEM SEMPRE o clima de Paraty é a glória. Sol e chuva, casamento de viúva. O céu vai ficando cinzento, e a água cai em chuás; os passarinhos bicam o ar em gritos finos, estridentes.
O cheiro forte é de Off ou Autan, citronela, penetrante, difuso, só às vezes uma brisa rompe a camada de chuva e traz boninas e jasmim.
As plantas desabam, exaustas. De vez em quando uma árvore ou galho grosso cai, num estampido de tiro.
Das telhas vãs do terraço surgem fungos vermelhos, cogumelos impossíveis, e samambaias espreitam pelas frestas.
Um galo de cores berrantes subiu o morro correndo, até nós, para contar que vinha mais chuva, mas deu-se conta de que era galo e despencou morro abaixo de novo, zonzo, tropeçando nas suas próprias pernas. O verão é façanhudo, só a cachoeira alivia. Até as galinhas abrem o bico, as vacas são estátuas, as redes, nhoc, nhoc, nhoc, e o cheiro de mato molhado dentro da bolha quente sufoca.
Por falta absoluta de assunto resolvemos fotografar as comidas. Ovos caipiras azuis (adoro esses ovos azuis), as espigas de milho colhidas na hora, a cesta de cacau. Fotografamos também um destes bules antigos de café, azul, de lata, cheio de flores amarelas que cobrem os pastos.
Os bichos maiores conservam certa distância de nós, e nós, deles. Incrível como seres humanos que anseiam pela organicidade total morrem de medo da vaca orgânica, do lagarto orgânico, da abelha, das pererecas incômodas, verdes demais, puladeiras, observam tudo de longe, gritaria pronta a estourar se se aproximarem muito.
As mini-andorinhas quase cedem à tentação de nos tocar, trêmulas como beija-flores, flutuando, quase caindo junto aos beirais, mas se atiram de novo para longe. Viemos para cá de repente (com medo de estradas e de Paraty cheia demais nas férias, ensopado, o reboco desabando das velhas casas), trazendo só poucos restos de luxo de festas. Não há o que me deixe mais feliz do que dar de cara com uma geladeira vazia e perto as coisas da terra. E delas extrair o máximo. Os tais ovos azuis, limões, farinhas, taioba, milho verde, pimentas, bananas sem fim, leite. É um mundo. Começamos com um peixe em lascas finas só marinado no limão por minutos e um temperinho de ervas.
Continuamos com um creme de milho todo espetado de manjericão, pimentas vermelhas por cima, mais um pouquinho de açúcar para queimar, à moda moura. E umas amêndoas supérfluas que dão um crocante. Pepino picado com coalhada e hortelã, arroz, feijão, bananas cruas cortadas em rodelas, farofa de boa farinha, sobremesa de fatias gordas de manga gelada.
O café da manhã, no entanto, é riquíssimo. Alguém nos deu uma cesta enorme de delícias de geléias de fazenda, biscoitos, sequilhos, o especialíssimo panetone do Fasano (obrigada!), os queijos da estrada, a mussarela defumada que se desfaz em grandes fitas, as lichias. (A empregada da Bahia chama as lichias de jaquinhas.) Uma árvore está carregada de pitombas, mas só para o mês de fevereiro.
Trouxe para reler "Estação Finlândia", de Edmund Wilson, edição dos 20 anos de aniversário da Companhia das Letras. Utopias, projetos socialistas, mas nenhuma revolução como esta que se instalou no sítio. Um dos empregados trabalha de verdade e colhe para si o que plantou, dando um tantinho para nós, de presente, assim, abertamente, ainda bem. Outra borboleteia pelo serviço, num dengue, "que idéia deste pessoal aparecer por aqui bem nas férias, será que não desconfiam?". Outro abriu uma casa de discos na cidade que vai de vento em popa e explica que precisa vender, que é esta a boa hora, e nem em casa entra.
Nem Marx foi tão longe.


ninahorta@uol.com.br

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