São Paulo, sábado, 11 de junho de 2011 |
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CRÍTICA ROMANCE Herta Müller celebra metáfora em livro sobre horror dos campos de trabalho
FRANCESCA ANGIOLILLO EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA "Tudo o que Tenho Levo Comigo" começa com a descrição de uma bagagem. Já em seu fragmento introdutório, Herta Müller nos depara com a crueza da existência de seu protagonista. Nada pertence a Leopold Auberg; mesmo a mala é adaptada de uma caixa de gramofone. Seus conteúdos, parcos e pragmáticos, são quase todos herdados de parentes e vizinhos. Leo, como é chamado, é um dos romenos alemães deportados aos "gulagui" soviéticos no pós-guerra, acusados de nazismo. (O mesmo, aliás, ocorreu à mãe da escritora e a um amigo poeta dela, Oscar Pastior, morto em 2006; juntos, ele e Müller queriam escrever um livro sobre a experiência.) DESPOSSUÍDO Tudo o que Leo tem não está dentro da mala: logo se percebe que sua única posse são as palavras. Crescentemente, elas deixam seu estado abstrato para se tornarem quase objetos palpáveis, que o prisioneiro do campo de trabalho pode carregar consigo -como consolo, amuleto e alimento. Destacadas no livro em maiúsculas, palavras como HULHA perdem seu sentido original. Esvaziadas, se enchem de tudo o que falta. O delírio devido à fome (que não é só fome, mas o "Anjo da Fome", pois também os sentimentos e sensações são objetificados), ao cansaço e ao fustigamento mental transforma tudo o que é abstrato em signo passível de interpretação. Com esse procedimento, Herta Müller celebra a metáfora como máxima figura de linguagem, em um romance que muito deve à poesia. Estranhamente, o resultado desse "delírio" não é desarticulado, mas claro e racional. Evidentemente construído, nem por isso soa afetado. Poético no trato do sofrimento, nem por isso resvala para o pieguismo. O pragmatismo com que o protagonista enfrenta sua desventura, armado somente dele contra a nostalgia, se espelha na escrita de Müller. Ela mostra, com seu último romance publicado antes de ganhar o Nobel de 2009, por que se fez merecedora do prêmio, que assim justificou sua escolha: "Com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, retrata a paisagem dos despossuídos". V.S. Naipaul, vencedor também do Nobel (em 2001) disse recentemente que as mulheres não são suas iguais. Ele poderia começar a se desfazer dos preconceitos lendo esta, que -quer ele queira, quer não- , é sua par no reconhecimento máximo dado a um escritor. TUDO O QUE TENHO LEVO COMIGO AUTOR Herta Müller EDITORA Companhia das Letras TRADUÇÃO Carola Saavedra QUANTO R$ 48 (304 págs.) AVALIAÇÃO ótimo Texto Anterior: Crítica/Romance: "Hotel Íris" comprova as sólidas qualidades de Yoko Ogawa Próximo Texto: Crítica/Filosofia: Livro reproduz debate entre frei e cientista Índice | Comunicar Erros |
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