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Taffarel e o Axioma de Cavaca
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
"Sina de goleiro é tão triste,
que joga no único lugar onde
não nasce grama". A tirada é
de um humorista carioca, Don
Rossé Cavaca, que brilhou nos
anos 50/60 na impertinente
"Tribuna da Imprensa".
Desengonçado e aflito, vivia
atolado em dívidas: enquanto
os colegas já andavam em seus
DKW, Dauphines ou Fuscas,
Cavaca montava na modestíssima Lambreta, sempre estropiada. Morreu nela.
Cláudio Taffarel sabe do que
falava Don Rossé. Já engoliu
frangos e, sobretudo, muito sapo. Herói nacional nos últimos
quatro dias, o italianão de
Criciumal, crente e modesto,
conhece verso e reverso do
Axioma de Cavaca. Ronaldinho pode desperdiçar um gol
certo, mas ele não tem opção,
deve agarrar o inagarrável.
Sem o dizer, elaborou o Espírito Taffarel.
Goleiro é como o miúra das
touradas ou o peru que se engorda para o Natal -chances
mínimas. O austríaco Peter
Handke, teatrólogo e escritor,
jamais ouviu falar em Don
Rossé Cavaca, mas "O Medo do
Goleiro diante do Pênalti"
(Brasiliense, 1988) desenvolve
o mesmo mote de solidão e angústia ("angst" no título original). Único dos 11 a quem se
permite o uso das delicadas
mãos para se defender, o goleiro, no entanto, está condenado
a enfrentar o petardo disparado pelo pé, conjunto de músculos, nervos e raiva.
Futebol é jogo de grande
plasticidade, trepidante, dramático, mas não produziu nenhum clássico do cinema de
ficção. Ao contrário do boxe,
mina de obras-primas, em geral sobre perdedores. Caso de
"Fat City", de John Huston.
Esse prolífico cineasta,
ex-boxeador, aceitou o desafio
de trazer o futebol para o cinema em "Escape to Victory"
("Fuga para a Vitória", 1981).
Na realidade, a partida é pretexto para empurrar a narrativa. Talvez inspirado no genial
"The Set-Up", de Robert Wise
(1949), em que o tempo real da
luta iguala-se ao do filme.
Não é o Huston da melhor
safra. Apesar da alavanca rítmica para movimentar um relato antinazista -inspirado
em fato ocorrido num campo
de prisioneiros de guerra, em
1943-, não resultou. Mesmo
com Sylvester Stalone, Michael
Caine, Max von Sydow e de
dois astros do futebol mundial,
Bobby Moore e o nosso Pelé.
Quando ainda imaginava o
cinema como arte total, mas já
dava os primeiros passos neste
ofício de olhar em volta, colaborei no roteiro de "O Craque"
(1954), produzido por Mário
Civelli, incursão paulista do
diretor carioca José Carlos
Burle, fotografia e música dos
grandes Rui Santos e Guerra
Peixe (argumento do então radionovelista Helio Tys, tendo
como co-roteirista Saul Lachtermacher, recém-chegado do
Idehc, de Paris).
Eva Wilma, Herval Rossano,
Carlos Alberto e Liana Duval
nos principais papéis. História
romântica que a trepidação do
futebol não conseguiu acionar.
Só vi o filme na moviola, incompleto. Envergonhado. Hoje, é exibido de madrugada na
TV para encher o tempo.
O enredo fascinante de uma
partida de futebol, com 22 atores prontos para se agigantarem como protagonistas em
centenas de duelos individuais, só pode ser captado pela
televisão. A realidade ultrapassa qualquer golpe de imaginação. Sobretudo agora com
as dúzias de câmaras sincronizadas, poderosas teleobjetivas
que devassam tudo, microfones que captam berros e os recursos de edição eletrônica que
permitem referências imediatas, inacessíveis mesmo aos
privilegiados da tribuna de
honra.
O inesperado é fundamental:
o futebol que vale é o futebol
ao vivo, coração batendo, garganta apertada. Paixão ao
som de cronômetro. A ninguém ocorreria ver o "replay"
de uma partida de xadrez. A
conjunção Futebol-TV é exemplo clássico da conjunção
Meio-Mensagem. De preferência com narração minimalista
de modo que o arrebatamento
seja de quem assiste, sem mediações. Galvanizar sem o Galvão (que me perdoe o locutor
pelo trocadilho).
Dia seguinte, o complemento
indispensável -a crônica
transcendente, escrita de preferência por alguém capaz de
enxergar as nuances e sombras
que rondaram a bola. Paradigma óbvio, Armando Nogueira. Talvez Nelson Rodrigues, desde que, redivivo, sentasse ao seu lado (é conhecida
a frase de Nelson, uma nulidade em matéria de técnica, para
Armando depois de uma partida: "O que achamos do jogo
?").
Ousei propor no outro dia,
na TV, que nas próximas Copas, as disputas fossem diárias
para evitar os longos intervalos, em que o circo da mídia
magnifica as insignificâncias e
faz encolher a grandeza. Exagerei, guerreiros carecem de repouso. Joseph Blatter, novo
presidente da Fifa e que evidentemente não assiste ao
"Observatório da Imprensa"
pela TVE, já anunciou que a
próxima Copa será mais compacta, com o mesmo número
de participantes.
Enquanto isso, já nos lances
finais desta Farra da Copa, seria conveniente preservar o futebol da politização deformadora que reina por todo lado.
Se Pelé ousou comentar que
Ronaldinho ainda não rendeu
tudo o que dele se esperava e se
Pelé é ministro licenciado deste governo, não há razão para
crucificá-lo. Está exercendo
sua atual função de comentarista. É exagerado dizer que
"Pelé conturba com suas previsões" (Folha, 9/7, pág. 4-7).
Beckenbauer disse a mesma
coisa sobre nosso o camisa nove. Paulo Roberto Falcão tem
mostrado, no decorrer dos jogos, falhas graves em nosso esquema e desempenho.
Se antes daquele fatídico 16
de julho de 1950, quando o
Brasil enfrentou o Uruguai no
Maracanã, algum ex-craque
ou jornalista tivesse advertido
sobre o excesso de otimismo ou
para brechas em nossa defesa,
poderia ter evitado a primeira
grande tragédia futebolística
brasileira.
Que os argentinos gozem a
"banana mecânica", vencedora de seus algozes, vá lá, faz
parte de uma rivalidade que
hoje, felizmente, se reduz ao
âmbito do futebol. Que os
franceses façam arruaças
diante da concentração brasileira para perturbar o sono e o
ânimo dos atletas brasileiros
pode ser creditado a uma tradição retórica, subitamente
confrontada com a possibilidade da glória imediata.
Temos mais experiência em
campo. E, sobretudo, fora dele.
Há um ingrediente no mercado das emoções que o futebol
está trazendo para nosso repertório de vivências. No vocabulário esportivo leva o nome
de garra.
Prefiro tenacidade. Tem
muito a ver com o Espírito Taffarel ou seu corolário, o Axioma de Cavaca: nos confins do
gramado, pedaço às vezes seco,
sempre solitário, envolta em
barbantes, simples e fulgurante, lá está o começo e o fim, Gênese e Apocalipse -a meta.
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