São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998

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Taffarel e o Axioma de Cavaca

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

"Sina de goleiro é tão triste, que joga no único lugar onde não nasce grama". A tirada é de um humorista carioca, Don Rossé Cavaca, que brilhou nos anos 50/60 na impertinente "Tribuna da Imprensa".
Desengonçado e aflito, vivia atolado em dívidas: enquanto os colegas já andavam em seus DKW, Dauphines ou Fuscas, Cavaca montava na modestíssima Lambreta, sempre estropiada. Morreu nela.
Cláudio Taffarel sabe do que falava Don Rossé. Já engoliu frangos e, sobretudo, muito sapo. Herói nacional nos últimos quatro dias, o italianão de Criciumal, crente e modesto, conhece verso e reverso do Axioma de Cavaca. Ronaldinho pode desperdiçar um gol certo, mas ele não tem opção, deve agarrar o inagarrável. Sem o dizer, elaborou o Espírito Taffarel.
Goleiro é como o miúra das touradas ou o peru que se engorda para o Natal -chances mínimas. O austríaco Peter Handke, teatrólogo e escritor, jamais ouviu falar em Don Rossé Cavaca, mas "O Medo do Goleiro diante do Pênalti" (Brasiliense, 1988) desenvolve o mesmo mote de solidão e angústia ("angst" no título original). Único dos 11 a quem se permite o uso das delicadas mãos para se defender, o goleiro, no entanto, está condenado a enfrentar o petardo disparado pelo pé, conjunto de músculos, nervos e raiva.
Futebol é jogo de grande plasticidade, trepidante, dramático, mas não produziu nenhum clássico do cinema de ficção. Ao contrário do boxe, mina de obras-primas, em geral sobre perdedores. Caso de "Fat City", de John Huston.
Esse prolífico cineasta, ex-boxeador, aceitou o desafio de trazer o futebol para o cinema em "Escape to Victory" ("Fuga para a Vitória", 1981). Na realidade, a partida é pretexto para empurrar a narrativa. Talvez inspirado no genial "The Set-Up", de Robert Wise (1949), em que o tempo real da luta iguala-se ao do filme.
Não é o Huston da melhor safra. Apesar da alavanca rítmica para movimentar um relato antinazista -inspirado em fato ocorrido num campo de prisioneiros de guerra, em 1943-, não resultou. Mesmo com Sylvester Stalone, Michael Caine, Max von Sydow e de dois astros do futebol mundial, Bobby Moore e o nosso Pelé.
Quando ainda imaginava o cinema como arte total, mas já dava os primeiros passos neste ofício de olhar em volta, colaborei no roteiro de "O Craque" (1954), produzido por Mário Civelli, incursão paulista do diretor carioca José Carlos Burle, fotografia e música dos grandes Rui Santos e Guerra Peixe (argumento do então radionovelista Helio Tys, tendo como co-roteirista Saul Lachtermacher, recém-chegado do Idehc, de Paris).
Eva Wilma, Herval Rossano, Carlos Alberto e Liana Duval nos principais papéis. História romântica que a trepidação do futebol não conseguiu acionar. Só vi o filme na moviola, incompleto. Envergonhado. Hoje, é exibido de madrugada na TV para encher o tempo.
O enredo fascinante de uma partida de futebol, com 22 atores prontos para se agigantarem como protagonistas em centenas de duelos individuais, só pode ser captado pela televisão. A realidade ultrapassa qualquer golpe de imaginação. Sobretudo agora com as dúzias de câmaras sincronizadas, poderosas teleobjetivas que devassam tudo, microfones que captam berros e os recursos de edição eletrônica que permitem referências imediatas, inacessíveis mesmo aos privilegiados da tribuna de honra.
O inesperado é fundamental: o futebol que vale é o futebol ao vivo, coração batendo, garganta apertada. Paixão ao som de cronômetro. A ninguém ocorreria ver o "replay" de uma partida de xadrez. A conjunção Futebol-TV é exemplo clássico da conjunção Meio-Mensagem. De preferência com narração minimalista de modo que o arrebatamento seja de quem assiste, sem mediações. Galvanizar sem o Galvão (que me perdoe o locutor pelo trocadilho).
Dia seguinte, o complemento indispensável -a crônica transcendente, escrita de preferência por alguém capaz de enxergar as nuances e sombras que rondaram a bola. Paradigma óbvio, Armando Nogueira. Talvez Nelson Rodrigues, desde que, redivivo, sentasse ao seu lado (é conhecida a frase de Nelson, uma nulidade em matéria de técnica, para Armando depois de uma partida: "O que achamos do jogo ?").
Ousei propor no outro dia, na TV, que nas próximas Copas, as disputas fossem diárias para evitar os longos intervalos, em que o circo da mídia magnifica as insignificâncias e faz encolher a grandeza. Exagerei, guerreiros carecem de repouso. Joseph Blatter, novo presidente da Fifa e que evidentemente não assiste ao "Observatório da Imprensa" pela TVE, já anunciou que a próxima Copa será mais compacta, com o mesmo número de participantes.
Enquanto isso, já nos lances finais desta Farra da Copa, seria conveniente preservar o futebol da politização deformadora que reina por todo lado. Se Pelé ousou comentar que Ronaldinho ainda não rendeu tudo o que dele se esperava e se Pelé é ministro licenciado deste governo, não há razão para crucificá-lo. Está exercendo sua atual função de comentarista. É exagerado dizer que "Pelé conturba com suas previsões" (Folha, 9/7, pág. 4-7). Beckenbauer disse a mesma coisa sobre nosso o camisa nove. Paulo Roberto Falcão tem mostrado, no decorrer dos jogos, falhas graves em nosso esquema e desempenho.
Se antes daquele fatídico 16 de julho de 1950, quando o Brasil enfrentou o Uruguai no Maracanã, algum ex-craque ou jornalista tivesse advertido sobre o excesso de otimismo ou para brechas em nossa defesa, poderia ter evitado a primeira grande tragédia futebolística brasileira.
Que os argentinos gozem a "banana mecânica", vencedora de seus algozes, vá lá, faz parte de uma rivalidade que hoje, felizmente, se reduz ao âmbito do futebol. Que os franceses façam arruaças diante da concentração brasileira para perturbar o sono e o ânimo dos atletas brasileiros pode ser creditado a uma tradição retórica, subitamente confrontada com a possibilidade da glória imediata.
Temos mais experiência em campo. E, sobretudo, fora dele. Há um ingrediente no mercado das emoções que o futebol está trazendo para nosso repertório de vivências. No vocabulário esportivo leva o nome de garra.
Prefiro tenacidade. Tem muito a ver com o Espírito Taffarel ou seu corolário, o Axioma de Cavaca: nos confins do gramado, pedaço às vezes seco, sempre solitário, envolta em barbantes, simples e fulgurante, lá está o começo e o fim, Gênese e Apocalipse -a meta.



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