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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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WALTER SALLES

De Woody Allen a Wong-Kar-Wai: 20 aulas de cinema

Um estudante perguntou uma vez a Jean Pierre Melville, cineasta francês cultuado pela turma da nouvelle vague, o que era importante para se fazer um bom filme. Melville não se fez de rogado. Passou por cima do tom meio simplista da pergunta e soltou a seguinte pérola: "50%, a história, 50%, os atores, 50%, a direção de arte, 50%, a fotografia. 50%, a montagem, e assim por diante. E se um desses elementos der errado, você acaba de ferrar 50% do seu filme".
Para quem quiser explorar o tema do fazer-cinema com mais profundidade, acaba de sair um livro que é uma festa. Intitulado "Moviemaker's Master Class", é composto de 20 aulas dadas por cineastas que definiram o que é o cinema contemporâneo. Autores tão diversos quanto David Lynch, John Woo ou Godard discorrem sobre as mesmas questões: como eleger e contar uma história, como dirigir atores, como definir a gramática visual de um filme.
Livros como esse são geralmente pesados e acadêmicos. Graças às entrevistas conduzidas com inteligência pelo jornalista francês Laurent Tirard, o tom aqui não é nunca retórico ou professoral. Até Woody Allen, tido como um diretor que detesta falar sobre seu método de trabalho, solta a língua. O resultado é revelador.
Allen, sobre como fazer comédias: "O gênero não perdoa. A questão principal é que nada deve distrair o espectador do riso. Se você move a câmera em excesso, se você edita em excesso, estará provavelmente matando o riso. A comédia pede um estilo límpido, direto. O enquadramento deve ser simples, como faziam Chaplin e Buster Keaton. O bom diretor de comédias deve ser espartano".
Allen, sobre a direção de atores: "As pessoas que me perguntam qual o segredo da direção de atores sempre acham que estou mentindo quando digo que não os dirijo -escolho atores talentosos e pronto. Muitos diretores gostam de sobredirigir seus atores. E os atores mergulham nisso porque gostam de ser sobredirigidos. Geralmente diretores e atores incorrem no erro de intelectualizar em excesso o processo, de ter discussões intermináveis sobre os personagens. Nada melhor para acabar com a espontaneidade"."
Surpreendentemente, o livro nos mostra que o diretor mais próximo dessa tese é...Godard: "Sou completamente incapaz de dirigir atores com a densidade e intensidade de Bergman, Cukor ou Renoir", diz. "Minhas observações raramente vão além de um "mais alto" ou "mais devagar". Deixo os atores livres. Bem, não completamente livres. Defino um caminho, mas eles é que têm que percorrê-lo."
É de Godard, também, a mais bela definição daquilo que faz um filme valer a pena: "Há dois níveis de conteúdo em um filme: o visível, e o invisível. O que se põe à frente da câmera é o visível. Se não há nada além disso, está-se fazendo televisão. Os verdadeiros filmes, para mim, são aqueles que contêm algo invisível. Algo que pode ser discernido por entre o visível, e só pode ser sentido porque essa parte visível foi pensada de uma maneira específica".
Percebe-se, ao ler essas 20 aulas de cinema, o quanto essa qualidade -a busca daquilo que não é diretamente visível- é essencial para cada um dos cineastas entrevistados. Entende-se, também, que ela não é exclusiva do cinema. Há no livro uma estória contada por John Boorman, o autor de "Amargo Pesadelo", que ilustra bem isso. Boorman foi preparar um filme na Amazônia, e teve um encontro com o cacique de uma tribo. "Tentei lhe explicar o que era um filme -algo que permite viajar de lugar a lugar, ver o mundo de diferentes ângulos e sonhar." O cacique respondeu sem pestanejar: "Ah sim, eu também conheço isso. Quando eu entro em transe, eu também viajo assim".
"Moviemaker's Master Class" é um achado, malgrado a ausência de dois cineastas que desenvolveram métodos de trabalho inovadores, Mike Leigh e Ken Loach. O livro pode ser achado em livrarias especializadas. Para quem se interessa por cinema, vale a pena conferir.
PS: Próximos possíveis governadores da Califórnia: Jean-Claude Van Damme, Sylvester Stallone etc. O leitor que me perdoe, mas há eventos que desafiam a ponderação.


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