São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONTO INÉDITO

Folha traz, com exclusividade, conto inédito da vencedora do Nobel de Literatura de 2004, que integrará coletânea a ser lançada no final deste mês

Paula

ELFRIEDE JELINEK

Outrora eu ainda fazia os exercícios de ginástica, que são feitos para que a gente adquira e mantenha uma barriga reta e dura. Então eu senti uma gravidez se aproximando e desisti desses importantes exercícios, que eu havia recortado de um jornal. Parece que eu havia sido feita para me tornar mãe, e portanto era, sim, um ser humano inteiro. E a gente costuma dizer que a gravidez exige um ser humano inteiro. Talvez tenha sido um erro eu ter parado com os exercícios quando senti que estava me tornando mãe, pois não é bom parar jamais com os exercícios quando a gente sente que está se tornando mãe: aí mesmo é que não. Pois caso contrário ao invés de um ser humano inteiro a gente é apenas um pela metade, ou dividido. Talvez isso também tenha contribuído para eu começar a me estranhar pouco a pouco de meu marido, coisa que encontrou sua expressão em uma crise conjugal. Temo que eu tenha me negligenciado um pouco quando senti uma nova vida crescer em mim. A gente não pode se concentrar tanto na vida que cresce dentro da gente, a gente tem de também dedicar uma atençãozinha ao marido, porque caso contrário ele se sente negligenciado de repente. Ele não deve acreditar que agora já não faz mais parte do primeiro plano e é relegado ao segundo. A vida nova dentro de mim, portanto, cresceu e cresceu, mas eu entrei cada vez mais em decadência exterior, numa grandeza diretamente proporcional ao crescimento da nova vida. E ainda por cima os pesados trabalhos domésticos que, se não atrapalhavam o crescimento da nova vida, me afastavam cada vez mais dos meus cuidados mínimos diários comigo mesma. Claro que eu ainda não tinha 16, mas quanto mais vida nova eu sentia dentro de mim, tanto mais cabelos e dentes caíam de minha cabeça, o que não teria sido absolutamente necessário, se eu tivesse feito uso dos truques cosméticos que a gente tem de usar a fim de poder permanecer com seus cabelos e seus dentes. Eu estava um bocado desfigurada! Até então sempre havia tentado manter meu juízo, por exemplo, através de programas de televisão, bem informada. Agora, no entanto, eu tinha de, justo na hora de olhar TV, buscar meu marido no restaurante, e isso se repetia cada vez mais; à hora do horário nobre ele já estava sempre completamente bêbado. O caminho do restaurante para casa era um caminho difícil, muitas vezes nós dois caíamos juntos, tropeçando em obstáculos, ou ele me esbofeteava até eu cair num buraco, no chão. Mesmo assim eu sempre estava contente por tê-lo trazido são e salvo para casa. Se ele se embebedasse mais tarde, eu não conseguiria mais arrancá-lo da cama de manhã cedo para encaminhá-lo ao trabalho. Mas assim ele ainda conseguia se preparar a tempo de seguir nesse caminho difícil. Também eu teria de fazer meu caminho difícil ao hospital em pouco, a fim de executar o nascimento. Durante o tempo em que senti que estava me tornando mãe, começou, pois, meu estranhamento em relação ao meu marido, que em pouco se estendia com rapidez, abarcando todos os setores do cotidiano. Porque meu único capital, meu corpo outrora elegante e por isso fácil de ser tratado, tanto cosmética quanto vestuariamente, agora lamentavelmente me deixava na mão. Quer dizer, era o fim da elegância. O mais importante na verdade é sempre ter uma base, qualquer que seja ela, sobre a qual a gente pode construir tudo, no meu caso essa base era meu corpo elegante, e ela se fora. Em pouco meu marido começou a me dar pontapés ora aqui ora acolá. Às vezes eu tinha sorte e ele acertava um lugar que doía menos, como a coxa ou o traseiro, mas às vezes eu tinha azar e ele acertava um lugar que me doía muito mais, a barriga por exemplo. Mesmo durante a gravidez, minha barriga parecia não ser nem um pouco sagrada para ele, conforme aliás deveria ser, mas sim algo profano, que podia ser chutado. Mesmo assim a gravidez não foi interrompida. Aqui está escrito que a gente tem de continuar os exercícios ginásticos quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas a circunstância, o estado interessante era para mim uma carga tão pesada que os exercícios tinham de ficar pra trás. O que é importante entre um homem e uma mulher é o respeito mútuo. E meu marido lamentavelmente não conseguia demonstrá-lo mais para comigo, porque eu me acabei tanto em termos físicos. Sei que deveria ter me defendido contra esse ímpeto interno que sempre me dizia: jogue tudo para o alto, que tinha de lutar contra ele, talvez, quem sabe, eu até tivesse vencido, e o ímpeto de jogar tudo para o alto teria sucumbido. Mas então eu de repente senti um pânico se levantar dentro de mim, que me dizia: cuidados cosméticos, ainda que sejam os cuidados mais essenciais, custam dinheiro. E esse dinheiro meu marido bebia. Mal meu marido havia ouvido que eu sentia que estava me tornando mãe, e já ele foi ao botequim e não saiu mais de lá a não ser para me bater e me chutar. Às vezes ele também me fazia pensar se nós não éramos demasiado limitados em termos de espaço para ter crianças, porque nós tínhamos apenas esse quarto pequeno na casa de meus pais para morar. Ele teria preferido que eu sumisse no ar ou talvez morrido com aquela vida que ainda não vira a luz do mundo, apenas para que eu e a vida que ainda não vira a luz do mundo não ocupássemos espaço. Ainda que meu corpo elegante tenha ocupado pouco espaço outrora em sua condição de corpo elegante, isso agora havia terminado, e de dia para dia eu ocupava mais espaço, tanto mais quanto mais sentia que me tornava mãe. Primeiro meu marido disse: Um dia eu não conseguirei mais entrar pela porta, quando chegar morto de cansado do trabalho para casa, se você e seu bastardo seguirem ocupando mais espaço, depois ele tentava, através dos métodos radicais mencionados acima, reduzir o volume da minha barriga a suas medidas normais e naturais. É uma sorte e tanto quando a gente sente que está se tornando mãe, mas eu sentia apenas as pancadas de meu esposo descerem como granizo sobre meu agora pouco flexível e por isso nada ágil corpo de grávida. É um tempo de preparação interna e externa para uma mulher. Eu sou uma mulher. Mas eu quase sempre estava despreparada quando as pancadas vinham, ainda que as esperasse de hora em hora. Às vezes, quando eu excepcionalmente tentava enfiar um pouco de diversão e distração da rotina cotidiana em minha cabeça, ao olhar alguma coisa na TV, ele logo me tirava da diversão e da distração, me tirava da sala dos meus pais, me conduzia ao nosso quartinho e lá me espancava, às vezes até na cabeça, que, se continuava ágil, aos poucos também passou a ter dificuldades, assim como meu corpo. Eu acredito que meu marido desejava em segredo que aquele que não havia nascido continuasse na condição de não nascido e jamais se tornasse algo nascido, coisa que quase chegou a conseguir num belo dia desses. Se não tivessem mantido minha alma e meu corpo unidos no hospital e quase atado o que não havia nascido a eles, quem sabe talvez hoje minha alma e meu corpo já estivessem separados um do outro. Mas ambos acabaram sendo salvos. Foi um belo tempo aquele, boa comida, carne muitas vezes, até que meu esposo voltou a me tirar do hospital, porque eu tinha de executar os trabalhos domésticos, pois, caso contrário, quem os faria? E assim também esse belo tempo chegou ao fim, ainda hoje gosto de me lembrar dele. Mas meu esposo desejava ter-me ao lado dele, que é onde a mulher deve estar. E assim eu voltei às minhas obrigações cotidianas ao lado dele. Agora até que as coisas andavam de novo, com as forças um pouco renovadas; a vida que estava se preparando para ser, em minha barriga, saneada por algum tempo. No hospital eu já havia visto um novo corte de cabelo numa revista ilustrada, corte de cabelo que eu lamentavelmente não podia mandar fazer em minha cabeça. Oh, se eu o tivesse feito! O fato de não fazê-lo por certo foi um erro que logo se vingaria de mim, enquanto eu ficava cada vez menos atrativa para meu marido, vendo a vida que se formava por assim dizer comendo meus cabelos; um novo corte de cabelo talvez pudesse salvar o que ainda havia para ser salvo, que não era muito, mas esse sonho eu tive de ver frustrado antes mesmo de chegar a sonhá-lo de fato. E assim tudo ficou como era antes. Meu esposo talvez ficasse satisfeito com uma mulher de cabelo novo, cortado curto, mas ainda mais satisfeito ele ficava com um ou mais litros de álcool dentro de si. Apesar disso eu continuava sendo torturada pelo pensamento de que poderia ter feito bem mais em termos cosméticos e ginásticos para o caso que agora estava sucedendo, ou seja, meu ocaso físico, que se fazia visível, entre outras coisas, também na água das pernas, que tornava o ato de caminhar um assunto complicado e demorado. É até bem natural e nem um pouco perigoso que mulheres que estão esperando um filho tenham água nas pernas, e isso costuma desaparecer sem deixar rastros depois do nascimento. Essa é uma das poucas coisas que não deixam marcas em um ser humano. A água de fato sumiu sem deixar rastros e a criança era uma criança saudável, mais tarde ainda haveria mais uma. S e outrora eu ansiava por cuidados cosméticos e mais tempo para a ginástica, agora eu ansiava incompreensivelmente por uma vida melhor, que eu pensava que seria mais adequada para mim do que uma pior. Por certo foi um erro da minha parte pensar que eu tinha um direito natural a uma vida assim concedido pelo fato de eu ter filhos saudáveis. Há pessoas que não podem afirmar o mesmo de si. E também eu, a mãe, estava saudável. E isso era uma sorte que muitas mães afirmavam ser uma sorte desmerecida, porque entre essas muitas também há aquelas que trazem ao mundo crianças pouco saudáveis, quando não doentes, e as chamam de suas. Também o meu esposo estava, dadas as circunstâncias, saudável. As circunstâncias, por seu lado, eram quase insalubres nesse quarto pequeno, no qual viviam quatro pessoas, na verdade apenas três, pois crianças com menos de 14 anos são meias pessoas, é isso que diz a lei, quando se trata de quantas pessoas podem viajar em um automóvel. Talvez tenha sido um erro meu o fato de eu querer mudar essas circunstâncias de vida em dignas de vida, em circunstâncias dignas de vida, eu quero dizer. Eu deveria ter me contentado com o fato de todos termos o suficiente para comer até nos fartar, do que meu esposo se encarregava depois de ter desviado uma parte nem um pouco insignificante de seu salário semanal para fins alcoólicos. Eu também reconheço que as circunstâncias de vida de meu esposo também não eram as mais agradáveis do mundo, uma vez que além das circunstâncias de vida desagradáveis em casa, que nós dividíamos com ele, ele também tinha de encaminhar o trabalho desagradável e pesado na floresta. Em todo caso nós morávamos apenas em três, se não em dois, no pequeno espaço do quarto, enquanto ele derrubava árvores, zeloso, lá fora. Mas tão pouco quanto me contentava o fato de viver entre três em um espaço tão pequeno, tão pouco também me contentava viver entre quatro no mesmo espaço pequeno e ainda ser afastada a pancadas da frente da TV justo na parte mais empolgante, ora por ninharias ora, conforme eu tenho de admitir, por importantes faltas matrimoniais como uma louça que foi deixada de lavar por causa do "Comissário". Onde meu marido tinha razão, ele tinha razão. Serviços domésticos e crianças não podem sofrer sob as conseqüências do "Comissário". Quando os serviços domésticos e as crianças não sofriam sob as conseqüências do "Comissário", eles lamentavelmente sofriam, e cada vez mais, devido a uma mãe irritadiça e muitas vezes também rabugenta, ou seja, devido a mim, que imaginava estar vivendo sob uma carga insuportável, que se manifestava sobretudo em termos nervosos, mas que na verdade sempre fora suportável. Prova: eu a suportei. E isso durante vários anos! E isso prova, por sua vez, que no final das contas a culpa tinha de ser minha. Depois de eu ter desistido da ginástica diária para a barriga e os quadris, bem como do batom e da sombra para os olhos, eu teria de pelo menos buscar e encontrar uma compensação menos transitória, até permanente para isso, quer dizer, meu esposo, as crianças e tudo o que diz respeito aos serviços domésticos. Se é verdade que eu havia procurado e encontrado meu esposo, as crianças e inclusive os serviços domésticos, eles não foram uma compensação duradoura para mim. Ou seja, continuei conservando em mim um certo superficialismo, ainda que minha vida tivesse uma profundidade verdadeiramente suficiente; assim mesmo as pancadas que se abatiam sobre mim, por exemplo, muitas vezes acabavam deixando um sentimento profundo de ódio contra aquele que as dava dentro de mim, aquela que as recebia. Em seguida eu vim a cometer, conforme acredito, aquele que foi o erro decisivo: ver no dinheiro a solução desses problemas, ele que jamais pode ser uma solução de verdade, uma vez que as coisas decisivas da vida, conforme todo mundo sabe, não podem ser compradas pelo dinheiro, a saúde, por exemplo, conforme eu já expliquei anteriormente. Ao invés disso eu queria comprar sempre mais e com mais violência. Algo que a gente quer alcançar com violência muitas vezes acaba não dando certo. Mas algo que a gente pode comprar com dinheiro, a gente pode comprar, pressupondo-se o fato de que a gente pode dizer que esse dinheiro é seu. O dinheiro move o mundo. Isso é uma fatura das mais simples. Talvez tivesse sido de fato minha culpa, mas a prostituição por dinheiro, na qual eu ao final das contas vi a minha única saída para alcançar o que eu queria, me deu tanto dinheiro que eu poderia me dar ao luxo de levar uma vida despreocupada, principalmente no lugar em que morávamos, onde a oferta de prostitutas por assim dizer praticamente não estava à mão. Ou, para dizer melhor, teria me dado tanto dinheiro se não fosse impossível a má árvore dar bom fruto. O dinheiro conseguido com a prostituição era o resultado dessa má árvore, que também em meu caso não deu bom fruto. Tudo isso eu percebi mais tardar no dia em que tudo foi descoberto, ou seja, que o fruto que eu obtinha com tanto zelo era mau. Eu o havia obtido com a ajuda do meu corpo cosmeticamente descuidado e, lamentavelmente sou obrigada a dizer, quase desleixado, que mesmo assim ainda poderia ser chamado de um corpo feminino, cujos poucos cabelos ainda não haviam sido cortados, cujas unhas quebradas ainda não haviam sido pintadas, cujos saltos ainda estavam tortos e não haviam sido trocados, e assim por diante. Eu o havia obtido, ainda que alguém mal pudesse encontrar algo de atrativo em mim, nem mesmo com o auxílio de uma lupa, e ainda assim parece que as poucas características tipicamente femininas bastavam a fim de encaminhar com elas um negócio pequeno mas florescente. Mas justo no momento em que eu começava a me arranjar um pouco de novo, os cuidados de conservação e proteção já chegavam ao fim, pois nesse momento veio a se confirmar mais uma vez o fato de que a má árvore não pode dar bom fruto. E por um acaso idiota. Meus filhos e meu esposo se foram tão rápido que eu nem sequer me dei conta. Justo agora que eu voltava a ter in petto uma feminilidade um pouco mais cuidada. Precisamente agora que eu podia recomeçar a me tornar atrativa mais uma vez, tinha de acontecer isso. Os frutos obtidos da árvore má encolheram tanto mais rápidos na seqüência, conforme me parece, e eles encolheram inclusive nos tempos depois da separação, quando eu tive de procurar um emprego que por fim também acabei encontrando. De verdade, um capital parado chega ao fim bem rápido. Eu mesma tinha de trabalhar, não podia ficar parada. Talvez também tenha sido um erro meu até certo ponto não ter continuado a obter meus frutos da árvore má, coisa que configura uma atividade fácil, ainda que um tanto nojenta, mas eu queria, já que não tinha mais uma família que poderia chamar de minha, obter meus frutos de maneira decente. Talvez tenha sido um erro eu ter dado um basta na prostituição e me dedicado à atividade do fabrico; na primeira por certo eu ganharia mais, mas ela já havia me dado azar uma vez, sobretudo porque eu posso alimentar a esperança de, pela minha aparência, encontrar um namorado logo, que talvez venha a ter um trabalho mais limpo e não entre em contato com uma gota de álcool sequer. Então talvez o investimento que consiste em exercer um trabalho legal e correto em uma fábrica renda seus juros sob a forma de um novo casamento e de novos filhos. Não quero jogar para o alto essa chance, através de uma nova busca de frutos em árvores más... Coisas como ter azar ou colher frutos fáceis se transformam com facilidade num mau costume. E eu gostaria de também pertencer, em pouco tempo, àquelas pessoas que por costume e até com regularidade têm sorte, como o proprietário dessa fábrica de papel, por exemplo, para citar apenas um, essa fábrica na qual eu ganho meu pão e meus cosméticos. Os últimos representam um assim chamado EXTRA, que todavia me é muito conveniente e pertence à categoria dos investimentos legítimos que objetivam fundar um novo casamento e uma nova casa com uma pessoa nova, descansada e nada gasta. Dessa maneira eu por certo não haverei de obter muitos bens, mas farei com que pelo menos esses bens dêem seus frutos. Da outra maneira eu com certeza poderei vir a obter muito mais bens, mas em minhas mãos eles apenas haveriam de trazer azar e não dariam bons frutos. Para mim chega de azar. Agora eu quero progredir. Eu aprendi com os meus erros do passado, o que já é um senhor desempenho. Uma vez já fui eu quem cometeu o erro, em uma eventual segunda vez o erro não será meu. Aí as coisas terão de andar como manda o figurino.


Conto "Paula", da coletânea "A Inocência Infinda" (Die Endlose Unschuldigkeit, 1980), da Nobel de Literatura deste ano, Elfriede Jelinek, que será publicado na antologia "Escombros & Caprichos: O Melhor do Conto Alemão do Século 20" (que sairá no final deste mês pela editora gaúcha L&PM)

Tradução de Marcelo Backes



Texto Anterior: Artes plásticas: Mostra "festeja" 64 anos de Lennon
Próximo Texto: O livro: Antologia tem 50 contos alemães, de Kafka a estreante
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.