São Paulo, quinta-feira, 11 de outubro de 2007

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NINA HORTA

As cozinhas ilustram, mostram

Será que um dia vamos conciliar a realização da mulher e as batatas fritas em muito óleo?

O ROMANCE de Rachel Cusk, "Arlington Park", (Cia. das Letras, 280 págs. R$ 45), me faz voltar ao assunto da domesticidade, tão explorado e nem um pouco resolvido. Nem só de receitinhas divertidas vive o mundo das cozinheiras, e sabemos disto. O romance é a descrição dos sentimentos de algumas mulheres de uma cidadezinha inglesa. Os homens saem para trabalhar diariamente e as mulheres lavam, passam, cozinham, levam as crianças para a escola, remoendo seus ressentimentos, exaustas pelo tédio da rotina. Não acontece nada, nenhuma traição, nenhuma tragédia, é o tédio e a indagação de quem-sou-eu, em seus estados mais puros.
Fui procurar as cenas de cozinha, é claro.
Uma das mulheres reflete. "Os homens são assassinos. Pegam uma mulher e vão matando aos poucos." Ela, que já tivera um futuro, a mais inteligente da escola, vai para aquele subúrbio e não consegue sair daquele nó das crianças, das aulas, da comida, da escola, da limpeza, de tudo o que para ela é a negação de sua personalidade. Os homens, calmos, inocentes, vão matando, centímetro a centímetro, os anseios delas. Fazem a barba enquanto a mulher acaba o jantar para os amigos que eles convidaram. Saem do banheiro cheirosos, limpinhos, não põem as crianças para dormir, e ainda se incomodam por elas estarem atrasadas. Uma insensibilidade distraída.
O pior é que esta mesma mulher que se acha assassinada dia a dia acalentou a idéia de ter uma casa, família e filhos. E quando conseguiu, o chumbo começou a derreter em suas veias e mostrar seu peso. O pior foi o dia em que se deu conta que ela era a base daquela estrutura, que, se não saísse para as compras, não haveria nada para as crianças comerem. Que as tarefas domésticas competiam a ela, somente a ela.
E as cozinhas ilustram, mostram. Uma mulher olha a sua com orgulho. As janelas é que davam todo o charme. Iam do chão ao teto e se estendiam por todo o comprimento da casa. Eles haviam feito aquela reforma numa fúria de derrubar tudo que fosse parede... O que mais gostavam era de derrubar, até que outra coisa fosse criada. A cozinha nova separava-os do mundo cinza lá fora como um belo navio prestes a zarpar... Convidam amigos para jantar, que, solenes, contemplam aquela cozinha-templo. Comem lasanha, mousse de chocolate, bebem vinho e se despedem. No dia seguinte, uma das convidadas inadvertidamente (?) conta que, de lá, foram para a casa dela, tomaram uma garrafa de uísque, enrolaram o tapete e dançaram até de madrugada. Com toda aquela cozinha perfeita, ela sabia que estava separada de tudo e de todos.
Outra odeia a cozinha, como odiaria uma pessoa com quem quisera fazer amizade e não conseguira. Era o cômodo mais bagunçado da casa. "Tudo nela, paredes, tetos, armários, portas e molduras das janelas era pintado com uma camada grossa e uniforme de tinta da mesma cor, como se algo houvesse acontecido ali, algo que tivesse acarretado manchas indeléveis nas paredes e armários, de modo que alguém houvesse decidido pintá-los em vez de limpá-los." Para que arrumar alguma coisa que seria impreterivelmente suja no dia seguinte? Em vez de se matar na limpeza, ela fechava a porta, como se estivesse isolando um doente sujo atrás dela...
Uma das suburbanas descritas entra a toda hora na cozinha, porque é o cômodo mais afastado da casa, de onde se vê o jardim, como o final de um porto, o píer, "onde talvez voassem gaivotas e as ondas viessem rebentar nos paredões do porto, e onde, ao fitar o mar aberto, você esperasse algum pensamento límpido lhe ocorrer".
Será que um dia vamos conciliar a realização de uma mulher e as batatas fritas em muito óleo?


ninahorta@uol.com.br

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