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NINA HORTA
As cozinhas ilustram, mostram
Será que um dia vamos conciliar a realização da mulher e as batatas fritas em muito óleo?
O ROMANCE de Rachel
Cusk, "Arlington
Park", (Cia. das Letras,
280 págs. R$ 45), me faz voltar ao assunto da domesticidade, tão explorado e nem um
pouco resolvido. Nem só de
receitinhas divertidas vive o
mundo das cozinheiras, e sabemos disto. O romance é a
descrição dos sentimentos de
algumas mulheres de uma cidadezinha inglesa. Os homens saem para trabalhar
diariamente e as mulheres lavam, passam, cozinham, levam as crianças para a escola,
remoendo seus ressentimentos, exaustas pelo tédio da rotina. Não acontece nada, nenhuma traição, nenhuma tragédia, é o tédio e a indagação
de quem-sou-eu, em seus estados mais puros.
Fui procurar as cenas de cozinha, é claro.
Uma das mulheres reflete.
"Os homens são assassinos.
Pegam uma mulher e vão matando aos poucos." Ela, que já
tivera um futuro, a mais inteligente da escola, vai para
aquele subúrbio e não consegue sair daquele nó das crianças, das aulas, da comida, da
escola, da limpeza, de tudo o
que para ela é a negação de
sua personalidade. Os homens, calmos, inocentes, vão
matando, centímetro a centímetro, os anseios delas. Fazem a barba enquanto a mulher acaba o jantar para os
amigos que eles convidaram.
Saem do banheiro cheirosos,
limpinhos, não põem as
crianças para dormir, e ainda
se incomodam por elas estarem atrasadas. Uma insensibilidade distraída.
O pior é que esta mesma
mulher que se acha assassinada dia a dia acalentou a idéia
de ter uma casa, família e filhos. E quando conseguiu, o
chumbo começou a derreter
em suas veias e mostrar seu
peso. O pior foi o dia em que
se deu conta que ela era a base
daquela estrutura, que, se não
saísse para as compras, não
haveria nada para as crianças
comerem. Que as tarefas domésticas competiam a ela, somente a ela.
E as cozinhas ilustram,
mostram. Uma mulher olha a
sua com orgulho. As janelas é
que davam todo o charme.
Iam do chão ao teto e se estendiam por todo o comprimento da casa. Eles haviam
feito aquela reforma numa
fúria de derrubar tudo que
fosse parede... O que mais
gostavam era de derrubar, até
que outra coisa fosse criada. A
cozinha nova separava-os do
mundo cinza lá fora como um
belo navio prestes a zarpar...
Convidam amigos para jantar, que, solenes, contemplam
aquela cozinha-templo. Comem lasanha, mousse de chocolate, bebem vinho e se despedem. No dia seguinte, uma
das convidadas inadvertidamente (?) conta que, de lá, foram para a casa dela, tomaram uma garrafa de uísque,
enrolaram o tapete e dançaram até de madrugada. Com
toda aquela cozinha perfeita,
ela sabia que estava separada
de tudo e de todos.
Outra odeia a cozinha, como odiaria uma pessoa com
quem quisera fazer amizade e
não conseguira. Era o cômodo mais bagunçado da casa.
"Tudo nela, paredes, tetos, armários, portas e molduras das
janelas era pintado com uma
camada grossa e uniforme de
tinta da mesma cor, como se
algo houvesse acontecido ali,
algo que tivesse acarretado
manchas indeléveis nas paredes e armários, de modo que
alguém houvesse decidido
pintá-los em vez de limpá-los." Para que arrumar alguma coisa que seria impreterivelmente suja no dia seguinte? Em vez de se matar na
limpeza, ela fechava a porta,
como se estivesse isolando
um doente sujo atrás dela...
Uma das suburbanas descritas entra a toda hora na cozinha, porque é o cômodo
mais afastado da casa, de onde se vê o jardim, como o final
de um porto, o píer, "onde talvez voassem gaivotas e as ondas viessem rebentar nos paredões do porto, e onde, ao fitar o mar aberto, você esperasse algum pensamento límpido lhe ocorrer".
Será que um dia vamos conciliar a realização de uma mulher e as batatas fritas em
muito óleo?
ninahorta@uol.com.br
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