São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

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CINEMA

"Manderlay", do diretor dinamarquês, estréia em São Paulo e explora relações raciais nos EUA da Grande Depressão

"Vou ao lugar onde dói", diz Lars von Trier

EMMA BELL
DO "INDEPENDENT"

Lars von Trier está em Copenhague -na realidade, ao lado da piscina da Zentropa, a coalizão de produtoras da qual ele é co-proprietário, juntamente com Peter Aalbaek-Jensen.
Pergunto sobre a política de seus filmes recentes. "Merda", diz ele, "isso soa perigoso. A parte política de minha obra não é nada de que eu me orgulhe. Mas ela tinha de estar presente. Comecei numa época em que todo mundo era muito politizado, quando um filme só se justificava se tinha algum tipo de mensagem política. Mas eu curtia muito a "arte pela arte'".
"Manderlay" é o segundo capítulo da trilogia "EUA, Terra de Oportunidades", de Von Trier. O filme não decepciona. Como "Dogville", estrelado por Nicole Kidman, "Manderlay" traz a personagem Grace -desta vez representada por Bryce Dallas Howard- e seu set árido e neobrechtiano, destituído de acessórios, que se resume a elementos desenhados no chão em giz. O filme é uma história sobre racismo e escravidão no Sul dos EUA na era da Grande Depressão.
Nos EUA, "Manderlay" foi visto como tão incendiário que poucos atores queriam ter algum vínculo com o filme. Seu material publicitário afirma que "Manderlay" é uma metáfora das intervenções agressivas do presidente Bush no Iraque: Grace não é capaz de entender como sua imposição bem-intencionada da democracia se transforma em severidade ditatorial, e os escravos de Manderlay exigem sua opressão própria, preferindo a certeza do cativeiro.
"Qualquer outro sistema de governo é mais fácil de implementar do que a democracia", diz o diretor. Von Trier já recuou um pouco da afirmação de que o filme seria uma alegoria da intervenção dos EUA. "Não é necessariamente sobre Bush", diz ele. "O filme pode ser visto assim, mas foi escrito antes do Iraque."
"Dogville" e "Manderlay" são inequivocamente antiamericanos? Von Trier suspira: "Não sei. Isso equivaleria a dizer que todo filme que incluir um gângster é antiamericano. Você tem razão, é claro, em dizer que os conflitos mais profundos nos filmes não são especialmente americanos".
"Se existe algo que possa de fato ser dito sobre a política em meus filmes", ele pondera, "eu diria: "Não é nada do qual eu me orgulhe". Mas não acho que exista tanta diferença entre meus filmes atuais e os que fiz algum tempo atrás. Tudo o que posso dizer é que minha técnica consiste em ir até o lugar onde dói -e é claro que isso se aplica a memórias e à história. Vejo as coisas por meio da ótica de minha criação de humanista de esquerda. Procurei sempre desafiar a mim mesmo e minhas crenças. É essa a técnica."
Ninguém poderia acusar Von Trier de ser anti-sentimental. A devastação emocional de "Ondas do Destino", "Os Idiotas" e "Dançando no Escuro" arrasou o público. Algo como um meio-termo entre os extremos vem com o minimalismo neobrechtiano da trilogia americana. Mas a fixação com a dor e o sofrimento fica.
Von Trier gosta de revelar os processos e a política do fazer cinema, especialmente com o movimento vanguardista divertidamente nostálgico Dogma 95.
O próprio diretor é proponente da coletivização, mas evita aderir ao rebanho, protegendo sua condição de autor para conseguir conservar o controle criativo total sobre seus trabalhos. "É como o problema da democracia", ele protesta. "Oitenta por cento dos dinamarqueses são estúpidos demais para a democracia, certo? Porque eles têm outra opinião ou porque não concordam comigo!"
Este foi o ano do décimo aniversário do Dogma 95, e o movimento foi oficialmente encerrado. Eterno rebelde, Von Trier imediatamente planejou um novo filme do Dogma, intitulado "Managing Director of It All". "Será feito com base nas normas técnicas do Dogma, mas não terá certificado porque não se enquadra no outro aspecto do Dogma: as intenções do conteúdo dos filmes.
"Depois de fazer "Manderlay", eu precisava de um pequeno descanso. Eu precisava fazer algo para me divertir, algo que não tivesse propósitos muito ambiciosos", conclui o diretor.


Tradução Clara Allain

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