|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA
"Manderlay", do diretor dinamarquês, estréia em São Paulo e explora relações raciais nos EUA da Grande Depressão
"Vou ao lugar onde dói", diz Lars von Trier
EMMA BELL
DO "INDEPENDENT"
Lars von Trier está em Copenhague -na realidade, ao lado da
piscina da Zentropa, a coalizão de
produtoras da qual ele é co-proprietário, juntamente com Peter
Aalbaek-Jensen.
Pergunto sobre a política de
seus filmes recentes. "Merda", diz
ele, "isso soa perigoso. A parte política de minha obra não é nada de
que eu me orgulhe. Mas ela tinha
de estar presente. Comecei numa
época em que todo mundo era
muito politizado, quando um filme só se justificava se tinha algum
tipo de mensagem política. Mas
eu curtia muito a "arte pela arte'".
"Manderlay" é o segundo capítulo da trilogia "EUA, Terra de
Oportunidades", de Von Trier. O
filme não decepciona. Como
"Dogville", estrelado por Nicole
Kidman, "Manderlay" traz a personagem Grace -desta vez representada por Bryce Dallas Howard- e seu set árido e neobrechtiano, destituído de acessórios, que se resume a elementos
desenhados no chão em giz. O filme é uma história sobre racismo e
escravidão no Sul dos EUA na era
da Grande Depressão.
Nos EUA, "Manderlay" foi visto
como tão incendiário que poucos
atores queriam ter algum vínculo
com o filme. Seu material publicitário afirma que "Manderlay" é
uma metáfora das intervenções
agressivas do presidente Bush no
Iraque: Grace não é capaz de entender como sua imposição bem-intencionada da democracia se
transforma em severidade ditatorial, e os escravos de Manderlay
exigem sua opressão própria, preferindo a certeza do cativeiro.
"Qualquer outro sistema de governo é mais fácil de implementar
do que a democracia", diz o diretor. Von Trier já recuou um pouco da afirmação de que o filme seria uma alegoria da intervenção
dos EUA. "Não é necessariamente
sobre Bush", diz ele. "O filme pode ser visto assim, mas foi escrito
antes do Iraque."
"Dogville" e "Manderlay" são
inequivocamente antiamericanos? Von Trier suspira: "Não sei.
Isso equivaleria a dizer que todo
filme que incluir um gângster é
antiamericano. Você tem razão, é
claro, em dizer que os conflitos
mais profundos nos filmes não
são especialmente americanos".
"Se existe algo que possa de fato
ser dito sobre a política em meus
filmes", ele pondera, "eu diria:
"Não é nada do qual eu me orgulhe". Mas não acho que exista tanta diferença entre meus filmes
atuais e os que fiz algum tempo
atrás. Tudo o que posso dizer é
que minha técnica consiste em ir
até o lugar onde dói -e é claro
que isso se aplica a memórias e à
história. Vejo as coisas por meio
da ótica de minha criação de humanista de esquerda. Procurei
sempre desafiar a mim mesmo e
minhas crenças. É essa a técnica."
Ninguém poderia acusar Von
Trier de ser anti-sentimental. A
devastação emocional de "Ondas
do Destino", "Os Idiotas" e "Dançando no Escuro" arrasou o público. Algo como um meio-termo
entre os extremos vem com o minimalismo neobrechtiano da trilogia americana. Mas a fixação
com a dor e o sofrimento fica.
Von Trier gosta de revelar os
processos e a política do fazer cinema, especialmente com o movimento vanguardista divertidamente nostálgico Dogma 95.
O próprio diretor é proponente
da coletivização, mas evita aderir
ao rebanho, protegendo sua condição de autor para conseguir
conservar o controle criativo total
sobre seus trabalhos. "É como o
problema da democracia", ele
protesta. "Oitenta por cento dos
dinamarqueses são estúpidos demais para a democracia, certo?
Porque eles têm outra opinião ou
porque não concordam comigo!"
Este foi o ano do décimo aniversário do Dogma 95, e o movimento foi oficialmente encerrado.
Eterno rebelde, Von Trier imediatamente planejou um novo filme
do Dogma, intitulado "Managing
Director of It All". "Será feito com
base nas normas técnicas do Dogma, mas não terá certificado porque não se enquadra no outro aspecto do Dogma: as intenções do
conteúdo dos filmes.
"Depois de fazer "Manderlay",
eu precisava de um pequeno descanso. Eu precisava fazer algo para me divertir, algo que não tivesse propósitos muito ambiciosos",
conclui o diretor.
Tradução Clara Allain
Texto Anterior: Crítica: Compositor emociona em registro íntimo Próximo Texto: Crítica: Diretor revê a América com a ironia habitual Índice
|