São Paulo, sexta, 11 de dezembro de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
O Núcleo de Educação da mostra fez um roteiro especial para pessoas com limitações físicas e mentais
Projeto exibe a Bienal para deficientes

Lalo de Almeida/Folha Imagem
Alunos da Escola Estadual Profa. Luzia de Godoy, do Tucuruvi, escutam os sons dos foguetes de Sylvie Fleury


CAMILA VIEGAS
especial para a Folha

O grupo chega receoso, pensando que a visita será puro falatório. Os guias da 24ª Bienal de São Paulo começam realmente com um discurso. Eles explicam o que é antropofagia e como o conceito -estabelecido nas artes visuais por Oswald de Andrade pelo "Manifesto Antropofágico", de 1928- pode ser articulado na produção artística contemporânea.
Mas é só isso de falação. Daí para frente, a visita será cheia de atividades divertidas. O Núcleo de Educação da Bienal montou, pela primeira vez em 47 anos de exposições, um roteiro para pessoas com limitações físicas e mentais.
A coordenadora do projeto "Diversidade", Nuria Kello, explica que, de todos os grupos especiais que visitam a mostra, o maior desafio são os cegos. Não é para menos. A maior parte das obras presentes é estritamente visual. "Mas há, na exposição, muitos trabalhos que exploram outros sentidos", diz Nuria. "Esta é a maior vantagem da Bienal e da arte contemporânea para esse público."
Até ontem, 250 deficientes e acompanhantes participaram do programa. Cegos e pessoas com visão subnormal somam 50, o que equivale a 20% desse total.
O roteiro interativo montado para este grupo inicia com as obras de Tarsila do Amaral, no terceiro andar do pavilhão. As telas "E.F.C.B. (Estrada de Ferro Central do Brasil)", produzida pela artista paulista em 1924, e "A Negra", de 1923, ilustram o tema antropofágico.
As imagens foram reproduzidas com os contornos em relevo. "Dessa maneira podemos mostrar como Tarsila tratou a paisagem, com casinhas e as estruturas metálicas da estrada de ferro, e a negra em busca da identidade nacional."
Os monitores explicam que Tarsila foi estudar na Europa, "comeu" a pintura moderna que se fazia por lá e trouxe digerida uma iconografia que redefine a imagem brasileira, compreendendo sua dinâmica cultural e a riqueza de sua formação étnica.
O passo seguinte é sentir as diferentes texturas de uma tela preparada pelos próprios monitores e os instrumentos de um pintor tradicional (pincel, tinta, solvente etc.).
Eles cheiram os trabalhos de cera de Valeska Soares, entram na "Casa Corpo", de Lygia Clark, diferenciam as cores dos foguetes de Sylvie Fleury, por meio da intensidade das músicas emitidas pelas peças, e vestem os "Parangolés", de Hélio Oiticica, para dançar a "Tropicália", de Caetano Veloso.
O roteiro também reserva privilégios. Os deficientes visuais são os únicos autorizados a tocar no "Espelho Cego", de Cildo Meireles.
Nuria explica que a série foi definida em conjunto com o grupo de monitores cinco dias antes da Bienal ser aberta. "Tínhamos que ver a mostra montada para aplicar aquilo que discutimos durante todo o mês de setembro."
Mesmo assim, a sequência varia dependendo dos cegos, que são conhecidos antes de irem à Bienal, e do monitor que está apresentando a exposição. "Se o Guilherme (Teixeira) estiver por perto, a gente com certeza passa pela obra de Oppenheim", diz Kello mostrando a relação de amizade que se criou entre os guias.
Além dos cursos de história da arte, obrigatórios para todos os monitores da Bienal, esses sete voluntários tiveram aulas específicas e foram visitar instituições e museus. "O guia deve falar com naturalidade e não evitar dizer o que está vendo. O vocabulário deve ser o mesmo que se usa no dia-a-dia", explica a coordenadora do projeto.
Nuria nasceu em Buenos Aires, onde estudou artes plásticas. Ela fez um curso de especialização em museologia na Universidade de Harvard e um estágio com grupos especiais no Museu de Belas Artes de Boston, nos Estados Unidos.
Há um ano, Nuria mora em São Paulo e viu na Bienal uma maneira de aplicar o que aprendeu e enriquecer seu currículo.
Uma das monitoras treinadas pelo projeto, Regina Reis, disse que o grupo não teve tempo ainda de discutir a possibilidade de continuar o trabalho desenvolvido na Bienal. "Se não continuarem, "los' mato", brinca Nuria, com sotaque portenho.



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