São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2002

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RESENHA DA SEMANA

Pigalle dos pobres

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Os lugares são as pessoas. Ninguém encarnou melhor o espírito boêmio da Lapa carioca do que Madame Satã: "Amava a minha Lapa querida. Parecia que ela estava dentro da minha pele. Foi lá que eu bati para matar e apanhei para morrer", diz o célebre e temerário malandro homossexual no trecho de suas memórias incluído na antologia "Lapa do Desterro e do Desvario", com organização de Isabel Lustosa.
"Pigalle dos pobres", como a define João Antônio num outro texto do livro, a Lapa sofreu todo o tipo de intervenções urbanísticas e mudanças moralizadoras ao longo dos anos, e de todas a principal consequência foi a transformação do bairro, antes sinônimo da sedução do "bas-fonds", em materialização geográfica da nostalgia.
Alguém há sempre de lamentar o desaparecimento do Rio da sua infância, da Ipanema da sua adolescência. Paris ou Londres da sua juventude. O mundo nunca é o mesmo. Mas é incrível como a Lapa se presta com facilidade a esse tipo de idealização, a julgar por grande parte dos textos reunidos nesta antologia.
Não importa quando a tenham conhecido os cronistas, a Lapa é lamentada por quase todos, por já não ser, no momento em que escrevem, o que era quando a conheceram.
De fato, a Lapa passou por várias investidas devastadoras. Partes inteiras do bairro foram derrubadas, seus moradores e frequentadores, escorraçados por campanhas de moralização: interditou-se o jogo, fecharam-se os prostíbulos.
Mas são mudanças a que o mundo inteiro está sujeito e que fazem parte do movimento e da dinâmica que vão permitir o aparecimento de novas épocas e novos lugares, cujo desaparecimento no futuro alguém também haverá de lamentar.
Como ironiza o texto de Lima Barreto presente na antologia, a Lapa já havia sido um bairro familiar antes de se tornar o antro da perdição e de todos os vícios cuja perda a maioria das crônicas aqui reunidas deplora. É o que dá a essa nostalgia de um paraíso perdido da malandragem e da prostituição um tom simpático, mas ao mesmo tempo ingenuamente romântico.
É preciso um personagem cínico, com a mais completa falta de pudor do dr. Mandrake, de Rubem Fonseca, para pôr os pingos nos "is": "Quando eu era bem pequeno, fui à Lapa. Entrei na Bol e tomei meio litro de leite. Um velho garçom me disse, "a Lapa não é mais a mesma". Eu não acredito em conversa de velho. Acho que a Lapa foi sempre aquela merda".
Mais adiante, dr. Mandrake, ao olhar para as calçadas cheias de gente e as luzes dos cinemas da Cinelândia, tem uma recaída romântica, à sua maneira, é claro: "Puta merda, eu gosto pra caralho desta cidade".
Cada um vê o que quer no lugar onde bem entende. Manuel Bandeira vê da sua janela, no meio da zona do meretrício, uma Lapa proustiana: "Odete morava no Beco das Carmelitas. Foi lá que Swann a encontrou. Não tenha dúvida; o "coté de chez Swann" era por ali. O lado de Guermantes era o do convento. Então foram andando para a praia e na calçada do Teatro Cassino tomaram um ônibus Mauá-Ipanema".
A Lapa desperta a busca do tempo perdido nos seus cronistas. O romantismo com que se lembram de "uma Lapa que não existe mais e, quando muito, imita a si mesma, olhos compridos no passado" (João Antônio) os leva a ver o melhor no pior dos mundos, o paraíso no inferno. Porque é o que já não podem alcançar.
A potência da idealização serve tanto à criação de obras literárias como de alimento a uma nostalgia sem fundo. É o que faz o cronista Luís Martins falar com saudosismo da "puta velha e desdentada" que o assombrava na adolescência, quando na verdade tem saudade é da própria juventude.
É também o que atiça a índole romanesca de Mário Lago, ao descobrir entre os pertences de uma prostituta que frequentava ainda moço um livro de poemas com dedicatória: "Eu me perdia em conjeturas, procurando encontrar o ponto onde todos aqueles elementos se enredariam, construindo um mundo de histórias, todas elas possíveis e dolorosas todas elas".
A Lapa não é um lugar que já não existe. É um lugar que nunca existiu, e que só por isso pode continuar existindo.


Lapa do Desterro e do Desvario - Uma Antologia
   
Autores: Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Ribeiro Couto, Madame Satã, Mário Lago, Rubem Fonseca e outros
Organização: Isabel Lustosa
Editora: Casa da Palavra
Quanto: R$ 50 (228 págs.)




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