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RESENHA DA SEMANA
Pigalle dos pobres
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Os lugares são as pessoas.
Ninguém encarnou melhor o espírito boêmio da Lapa
carioca do que Madame Satã:
"Amava a minha Lapa querida.
Parecia que ela estava dentro da
minha pele. Foi lá que eu bati
para matar e apanhei para morrer", diz o célebre e temerário
malandro homossexual no trecho de suas memórias incluído
na antologia "Lapa do Desterro
e do Desvario", com organização de Isabel Lustosa.
"Pigalle dos pobres", como a
define João Antônio num outro
texto do livro, a Lapa sofreu todo o tipo de intervenções urbanísticas e mudanças moralizadoras ao longo dos anos, e de todas a principal consequência foi
a transformação do bairro, antes
sinônimo da sedução do "bas-fonds", em materialização geográfica da nostalgia.
Alguém há sempre de lamentar o desaparecimento do Rio da
sua infância, da Ipanema da sua
adolescência. Paris ou Londres
da sua juventude. O mundo
nunca é o mesmo. Mas é incrível
como a Lapa se presta com facilidade a esse tipo de idealização,
a julgar por grande parte dos
textos reunidos nesta antologia.
Não importa quando a tenham conhecido os cronistas, a
Lapa é lamentada por quase todos, por já não ser, no momento
em que escrevem, o que era
quando a conheceram.
De fato, a Lapa passou por várias investidas devastadoras.
Partes inteiras do bairro foram
derrubadas, seus moradores e
frequentadores, escorraçados
por campanhas de moralização:
interditou-se o jogo, fecharam-se os prostíbulos.
Mas são mudanças a que o
mundo inteiro está sujeito e que
fazem parte do movimento e da
dinâmica que vão permitir o
aparecimento de novas épocas e
novos lugares, cujo desaparecimento no futuro alguém também haverá de lamentar.
Como ironiza o texto de Lima
Barreto presente na antologia, a
Lapa já havia sido um bairro familiar antes de se tornar o antro
da perdição e de todos os vícios
cuja perda a maioria das crônicas aqui reunidas deplora. É o
que dá a essa nostalgia de um
paraíso perdido da malandragem e da prostituição um tom
simpático, mas ao mesmo tempo ingenuamente romântico.
É preciso um personagem cínico, com a mais completa falta
de pudor do dr. Mandrake, de
Rubem Fonseca, para pôr os
pingos nos "is": "Quando eu era
bem pequeno, fui à Lapa. Entrei
na Bol e tomei meio litro de leite.
Um velho garçom me disse, "a
Lapa não é mais a mesma". Eu
não acredito em conversa de velho. Acho que a Lapa foi sempre
aquela merda".
Mais adiante, dr. Mandrake,
ao olhar para as calçadas cheias
de gente e as luzes dos cinemas
da Cinelândia, tem uma recaída
romântica, à sua maneira, é claro: "Puta merda, eu gosto pra
caralho desta cidade".
Cada um vê o que quer no lugar onde bem entende. Manuel
Bandeira vê da sua janela, no
meio da zona do meretrício,
uma Lapa proustiana: "Odete
morava no Beco das Carmelitas.
Foi lá que Swann a encontrou.
Não tenha dúvida; o "coté de
chez Swann" era por ali. O lado
de Guermantes era o do convento. Então foram andando para a
praia e na calçada do Teatro
Cassino tomaram um ônibus
Mauá-Ipanema".
A Lapa desperta a busca do
tempo perdido nos seus cronistas. O romantismo com que se
lembram de "uma Lapa que não
existe mais e, quando muito,
imita a si mesma, olhos compridos no passado" (João Antônio)
os leva a ver o melhor no pior
dos mundos, o paraíso no inferno. Porque é o que já não podem
alcançar.
A potência da idealização serve tanto à criação de obras literárias como de alimento a uma
nostalgia sem fundo. É o que faz
o cronista Luís Martins falar
com saudosismo da "puta velha
e desdentada" que o assombrava na adolescência, quando na
verdade tem saudade é da própria juventude.
É também o que atiça a índole
romanesca de Mário Lago, ao
descobrir entre os pertences de
uma prostituta que frequentava
ainda moço um livro de poemas
com dedicatória: "Eu me perdia
em conjeturas, procurando encontrar o ponto onde todos
aqueles elementos se enredariam, construindo um mundo
de histórias, todas elas possíveis
e dolorosas todas elas".
A Lapa não é um lugar que já
não existe. É um lugar que nunca existiu, e que só por isso pode
continuar existindo.
Lapa do Desterro e do Desvario - Uma Antologia
Autores: Aluísio Azevedo, Lima
Barreto, Ribeiro Couto, Madame Satã,
Mário Lago, Rubem Fonseca e outros
Organização: Isabel Lustosa
Editora: Casa da Palavra
Quanto: R$ 50 (228 págs.)
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