São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

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SHOW/CRÍTICA

Paulinho da Viola e Nó em Pingo d'Água dão início à turnê de novo disco do grupo

Um repertório de novos choros que existem desde sempre

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Ué : "Sinal Fechado" agora é choro?", questionava um entendido, na saída do show. A pergunta diz mais do que sabe, talvez. Na versão do Nó em Pingo d'Água, a clássica enigmática canção de Paulinho da Viola -que é e não é samba-canção- volta ou vai para o choro também. Leva a canção a um limite de si e faz reverter sobre o próprio Paulinho suas lições de ecologia musical: a auto-sustentação do repertório, pela renovação natural dos recursos. "Mas não me altere o samba tanto assim", cantarolava uma amiga, bem-humorada, em resposta. O próprio compositor, como sempre, era o mais bem-humorado de todos, muito à vontade, de branco no meio da rapaziada de preto. Todos nas brumas, claro, porque alguma lei insondável decretou há décadas que show de música popular precisa de gelo seco e fachos de luz, sem falar nas mandalas.
Era o primeiro espetáculo da turnê de lançamento do novo disco do Nó em Pingo d'Água, só com músicas de Paulinho da Viola (mais uma de seu pai, César Faria). E o auditório do Sesc/Vila Mariana estava lotado na sexta, como era previsível. Não bastasse tudo o que já fez, depois do filme de Izabel Jaguaribe e Zuenir Ventura, Paulinho da Viola virou um amigo querido de todos. Mais do que isso: sua figura torna concreta certa aspiração de harmonia na vida, uma verdade ideal do país, negada dia após dia pelas desarmonias (sobre isso, vale a pena ler a resenha de Milton Ohata, na última revista "Novos Estudos").
Tal harmonia passa também pelas harmonias propriamente ditas. Seja em números consagrados, como "Sarau pra Radamés" e "Beliscando", seja em novidades como "Chuva Fina Também Molha" e "Lembrança de Jonas", as harmonias de Paulinho têm algo do espírito não-coercitivo, da convivência respeitosa e afetiva que a gente agora sabe que não é só da música, é do autor. No meio do sol, vêm os cromatismos, as nostalgias; mas também no meio do lamento pinga um acorde alterado, nascem modulações para reconstituir o equilíbrio. Nada se perde, tudo se transforma: isso agora virou um provérbio do coração.
Na vida real não é sempre assim, a começar pelas perdas musicais. Santo Nó em Pingo d'Água, então, que faz ouvir o gênio de Paulinho compositor. Mesmo numa noite de estréia, com inevitáveis nervosismos, mesmo se as coisas não chegaram a decolar com a leveza transcendental que se sonha, o que se ouviu é um repertório tão forte que custa lembrar que esses choros não existem desde sempre, não foram compostos por Deus no céu, ou Pixinguinha em Catumbi. E sambas: porque Paulinho também cantou coisas como "Dança da Solidão" (novos lindos acordes no início) e "Timoneiro" (arranjo arrojado) -e um samba novo, meio bossa-nova, ainda sem nome.
Que o show ainda não estava no ponto foi óbvio. O grupo teve de recomeçar uma música, certa estrofe foi cantada com a harmonia do refrão, coisas assim. Não têm maior importância. Passada a estréia, tudo cai mais fácil nos dedos. Cai na consciência desde já: centrada e sorridente, no meio de tantas lembranças -Radamés, Jonas, Jacob, Rabello- e agora no meio da moçada, a figura de Paulinho da Viola nos concede sem esforço a sua arte, que volta ou vai para o choro como quem diz amém.


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