São Paulo, quinta-feira, 12 de março de 2009

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NINA HORTA

O cozinheiro invisível de Paraty


O dono da ilha resolveu fazer uma surpresa. Camarão ensopadinho com chuchu, arroz e mandioca frita


MINHA MÃE , operada, no hospital, fugia daquela situação difícil, fechando os olhos e fingindo que estava em Paraty. Resolvi recorrer ao mesmo artifício, porque não ando aguentando trabalhar neste calor dos infernos.
Sabe como é, as mocinhas podem botar um short, uma regata, mas as velhas têm que esconder da vista alheia tudo o que possa não parecer bonito, e como há o que esconder! Mais fácil uma tenda refrigerada. Pois, uma vez em Paraty, a família resolveu dormir no barco, no mar. Não havia ninguém muito aventureiro ou corajoso no grupo, e lá fomos avós, filha, neto e o barqueiro. O barco é velho, um banheirão, mas de desenho lindo, branco, saímos já de tardezinha com céu de Espírito Santo mandando raios de sol direto do peito.
Realmente não existe coisa mais bonita que aquele mar manso, encostado no verde do mato, com árvores nascendo deitadas sobre a água e macaquinhos leões-dourados macaqueando sem a menor ideia de que estão extintos. Os peixes passam em fila, com a barriga cheia, desfilando, muito prateados. Num minuto, a noite chegou. Estávamos atarefados em guardar a tralha que tínhamos levado e da qual não precisávamos de nada, travesseiro, lençol, cobertor (haja!), rádio, discos e lanches, é claro.
Quando começamos a nos interessar pela comida, já havíamos amarrado uma melancia numa corda e a deixado gelando nas profundas, escutamos um tuc, tuc, tuc de barco de borracha. O dono da ilha escarpada mais próxima, que tinha um bar conhecido, ao nos ver ali, resolveu fazer uma surpresa. Camarão ensopadinho com chuchu, arroz e mandioca frita. Como caiu do céu, nos soube a ambrosia, com umas caipirinhas bem geladas e as estrelas se precipitando céu abaixo, um zonzo bom de sono e calma total. O tcha, tcha das ondas batendo na madeira.
Por Deus, numa hora dessas a gente se pergunta por que tem que ter computador, televisão, livro, revista, jornal, carro, mesinha de cabeceira, lustre, saia rodada, anel e meia, mas deixa para lá, foi um sono só.
De manhãzinha (e olhe que detesto manhãzinhas ou manhãzonas com toda a força do meu ser), estava muito fresco, um cheiro no mato difícil de dizer do que, a mistura de frutas e flores e verdes. E tudo junto dava jasmim com pitanga e limão e talvez guaco. O sol era só um carinho, sem queimar, e jogar-se na água ali era a limpeza pura, dos pecados, do sujo, das tristezas, das ofensas. Um batismo de azul perereca. Um agradecimento de sapo grande.
É claro que o chuc, chuc do barquinho chegou de novo na maior das mordomias, já se achando o emissário de Dubai, com café e mandioca, acabada de colher e cozinhar, com manteiga e açúcar do lado. O que ele trouxesse achávamos lugar onde acomodar. De almoço, comemos lulas bem pequenas e fritas. O Vivinho fazia essas lulas como ninguém e um feijão com couve, tudo separado, ainda não se estava ao par do "surf and turf". Primeiro as lulas, depois o feijão com gosto leve de paio ou carne seca, nem me lembro mais. E muita água-de-coco.
(No meu último artigo, errei, escrevi que apenas uma vez na vida tomara água-de-coco gelada com gosto. Errado. Apenas uma vez na vida tomei água-de-coco gelada como gosto. E foi dessa vez, do coqueiro às tinas do Vivinho.) De sobremesa, Paraty não tem grandes modelos, senão frutas, a banana, principalmente a banana-ouro, bem pequenininha e doce, para ser mamada na ponta depois de um pouco amassada.
O barqueiro de nome Dito, quase nosso filho de tão querido, produziu seus próprios peixes com uma varinha de nada e mandou de volta para o cozinheiro invisível, que os fez fritos, naturalmente, que é o método de Paraty encarar o mundo. Rápido, rasteiro e frito. E estava fresco, é isso, estava muito fresco.

ninahorta@uol.com.br


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