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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"DIÁRIO DE UM FESCENINO"

Obra revela obscenidades anacrônicas

Novo romance de Rubem Fonseca decepciona

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

"Ne quidicam sapit qui sibinon sa pit" é a epígrafe em latim do primeiro volume das memórias de Casanova. Tradução: "Nada sabe quem não sabe de si mesmo". Não por outra ela é citada pelo escritor Rufus, para quem a coerência não é virtude literária, e a única virtude de um escritor é a coragem de falar as coisas que não pode falar. Rufus, como Casanova, escreve um diário pretendendo se conhecer nele.
Rufus é uma invenção. Conhecido como "Almanaque", devido à quantidade de informações acumuladas sobre escritores notórios, ele é o narrador do novo romance de José Rubem Fonseca, 78, "Diário de um Fescenino", que começa no primeiro dia do ano e termina no último.
Fonseca, que tem quatro contos ("A Força Humana", "Passeio Noturno", "Feliz Ano Novo" e "A Confraria dos Espadas") em "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século" (Objetiva), volta ao romance na coleção da Companhia das Letras de "obras provocativas e irreverentes". Nela, a fescenina trilogia de Henry Miller, "Sexus", "Nexus" e "Plexus ".
Há dois anos, o escritor mineiro dividiu a crítica com "Secreções, Excreções e Desatinos", livro de 14 contos, em que ousou uma caminhada sobre o fio da navalha, equilibrando-se entre o mau gosto e o genial. Exemplos?
1. Flatulência: "... os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se manifesta no meu rosto, sei disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio...". 2. Onanismo: "Como dizia o personagem de um filme de sucesso: "Não falem mal da masturbação! É sexo com alguém que eu amo'". 3. Olfato: "O puto não fedia, tinha até cheiro de sabonete. Deus me deu várias coisas boas, inteligência, um pau grande e um nariz de cão perdigueiro cego."
Desta vez, Rufus é um escritor que usa expressões como "fazer amor" e "dei no couro", fala "seios" e xinga os inimigos de "bobalhões". "Diário de um Fescenino " é de um escritor, segundo o título, obsceno, que relata seus últimos casos amorosos, a enrascada em que se meteu e reflete sobre o processo de criação literária.
Depois de preparar o roteiro do filme "O Homem do Ano" para o filho Zé Henrique Fonseca, baseado na obra de Patrícia Melo, "O Matador", Fonseca-pai nem de longe lembra o autor precursor e referência na literatura contemporânea brasileira, imitado por muitos. De "O Selvagem da Ópera", "A Grande Arte", "Bufo & Spallanzani", "Agosto" a "O Caso Morel", todos romances, " Diário de um Fescenino" tem muito pouco, ainda assim, com uma lupa e paciência, descobre-se que, sim, é um Fonseca, estão lá o cinismo, as citações e o humor: "Nunca conheci uma mulher que não fosse viciada em água."
Fonseca é dos poucos escritores brasileiros cujo estilo é identificável até numa tempestade de areia. Inventou a sua maneira de escrever, dispensando a norma culta, explorando personagens urbanos, o caos, os demônios, e se impôs. Se há citações excessivas e falta alma, há uma força criadora e ousadia inesgotáveis. Com ele, o gênero policial perdeu o estigma de literatura secundária . O problema de "Diário de um Fescenino" é que seu narrador é meio bobo. Escreve que o diálogo é um recurso de escritores medíocres. Órfão e ateu, ele odeia lavar pratos e conquista mulheres com facilidade inverossímil. Diz ele: "Parafraseando aquela música pop, as mulheres sempre me recebem de braços e pernas abertos."
É isso que Fonseca quer, narrar as aventuras ditas obscenas de um cara sem carisma que diz "seios"? Seu diário seria publicado por uma grande editora se não fosse a assinatura dele? Suas obscenidades, perto das de personagens recentes [falo de João Ubaldo Ribeiro e Juan Gutiérrez", são anacrônicas. Houve um Rufus que, há 2.000 anos, foi obrigado por soldados romanos a cuidar da cruz de Cristo. Não entendi qual cruz este Rufus-fescenino carrega.


Diário de um Fescenino
   Autor: Rubem Fonseca Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 33,50 (256 págs.)



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