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LIVRO/LANÇAMENTO
"DIÁRIO DE UM FESCENINO"
Obra revela obscenidades anacrônicas
Novo romance de Rubem Fonseca decepciona
MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA
"Ne quidicam sapit qui sibinon sa pit" é a epígrafe em
latim do primeiro volume das
memórias de Casanova. Tradução: "Nada sabe quem não sabe
de si mesmo". Não por outra ela é
citada pelo escritor Rufus, para
quem a coerência não é virtude literária, e a única virtude de um escritor é a coragem de falar as coisas que não pode falar. Rufus, como Casanova, escreve um diário
pretendendo se conhecer nele.
Rufus é uma invenção. Conhecido como "Almanaque", devido
à quantidade de informações acumuladas sobre escritores notórios, ele é o narrador do novo romance de José Rubem Fonseca,
78, "Diário de um Fescenino",
que começa no primeiro dia do
ano e termina no último.
Fonseca, que tem quatro contos
("A Força Humana", "Passeio
Noturno", "Feliz Ano Novo" e "A
Confraria dos Espadas") em "Os
Cem Melhores Contos Brasileiros
do Século" (Objetiva), volta ao romance na coleção da Companhia
das Letras de "obras provocativas
e irreverentes". Nela, a fescenina
trilogia de Henry Miller, "Sexus",
"Nexus" e "Plexus ".
Há dois anos, o escritor mineiro
dividiu a crítica com "Secreções,
Excreções e Desatinos", livro de
14 contos, em que ousou uma caminhada sobre o fio da navalha,
equilibrando-se entre o mau gosto e o genial. Exemplos?
1. Flatulência: "... os flatos ao serem expulsos dão-me um grande
prazer que se manifesta no meu
rosto, sei disso pois na maioria
das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e
posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio...". 2. Onanismo: "Como dizia
o personagem de um filme de sucesso: "Não falem mal da masturbação! É sexo com alguém que eu
amo'". 3. Olfato: "O puto não fedia, tinha até cheiro de sabonete.
Deus me deu várias coisas boas,
inteligência, um pau grande e um
nariz de cão perdigueiro cego."
Desta vez, Rufus é um escritor
que usa expressões como "fazer
amor" e "dei no couro", fala
"seios" e xinga os inimigos de
"bobalhões". "Diário de um Fescenino " é de um escritor, segundo o título, obsceno, que relata
seus últimos casos amorosos, a
enrascada em que se meteu e reflete sobre o processo de criação
literária.
Depois de preparar o roteiro do
filme "O Homem do Ano" para o
filho Zé Henrique Fonseca, baseado na obra de Patrícia Melo, "O
Matador", Fonseca-pai nem de
longe lembra o autor precursor e
referência na literatura contemporânea brasileira, imitado por
muitos. De "O Selvagem da Ópera", "A Grande Arte", "Bufo &
Spallanzani", "Agosto" a "O Caso
Morel", todos romances, " Diário
de um Fescenino" tem muito
pouco, ainda assim, com uma lupa e paciência, descobre-se que,
sim, é um Fonseca, estão lá o cinismo, as citações e o humor:
"Nunca conheci uma mulher que
não fosse viciada em água."
Fonseca é dos poucos escritores
brasileiros cujo estilo é identificável até numa tempestade de areia.
Inventou a sua maneira de escrever, dispensando a norma culta,
explorando personagens urbanos, o caos, os demônios, e se impôs. Se há citações excessivas e
falta alma, há uma força criadora
e ousadia inesgotáveis. Com ele, o
gênero policial perdeu o estigma
de literatura secundária . O problema de "Diário de um Fescenino" é que seu narrador é meio bobo. Escreve que o diálogo é um recurso de escritores medíocres.
Órfão e ateu, ele odeia lavar pratos
e conquista mulheres com facilidade inverossímil. Diz ele: "Parafraseando aquela música pop, as
mulheres sempre me recebem de
braços e pernas abertos."
É isso que Fonseca quer, narrar
as aventuras ditas obscenas de um
cara sem carisma que diz "seios"?
Seu diário seria publicado por
uma grande editora se não fosse a
assinatura dele? Suas obscenidades, perto das de personagens recentes [falo de João Ubaldo Ribeiro e Juan Gutiérrez", são anacrônicas. Houve um Rufus que, há
2.000 anos, foi obrigado por soldados romanos a cuidar da cruz
de Cristo. Não entendi qual cruz
este Rufus-fescenino carrega.
Diário de um Fescenino
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (256 págs.)
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