São Paulo, sexta-feira, 12 de maio de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Mulher em trânsito

Colocou os óculos escuros e se olhou no espelho. Achava-se bonita assim. Parecia Melina Mercouri em "Fedra", numa cena em que a atriz grega aparece de turbante branco, muito digna e sofrida, para enfrentar uma greve de operários na fábrica do marido. Nunca esquecera aquela cena.
Ouviu o ruído do carro que estacionava à porta da frente.
Manuel abriu-lhe a porta traseira do Galaxie prateado, deu a volta pela frente e tomou o volante.
- Vamos pegar trânsito difícil, comentou ele. Está tudo entupido.
Conhecia o trajeto do médico de todas as semanas. Quando Gracinha, sua mulher, dissera que a patroa ia ao analista, ele estranhou:
- Ela esteve lá na segunda-feira!
- Parece que piorou. Teve pesadelo outra vez.
Manuel fez um "Ah!", compreendendo. Todos compreendiam. Ou melhor: não compreendiam nada.
Tal como previra, dois quarteirões depois, o trânsito ficou embananado. Com esforço e paciência, conseguiu chegar até o centro. Mas pegou um congestionamento monstro nas proximidades da praça da República. Por azar, o sol estava forte naquele final de tarde dos anos 60.
- Ligo o ar refrigerado?, perguntou Manuel, voltando o rosto para trás.
Ela respondeu com um som estranho, metade gemido, metade grito.
- Não.
Sentia obrigação de sofrer o abafamento do carro, o calor da tarde. A cabeça rodava, raiva dela mesma. O que fazia ali, prisioneira naquela jaula de motores ligados, deitando fumaça e cheiro de gasolina? Quem era ela, afinal? Uma mulher de 40 anos, bem casada, mãe de dois filhos, dona de sua vida. E por que aquele médico, aquele tratamento que nunca acabava? Por que os pesadelos, os suores frios? O que estava errado nela?
Marcelo dava-lhe tudo, um marido respeitável, gentil, até mesmo na cama era um senhor homem. Não, não podia se queixar. Tinha tudo, não precisava de nada, mas sofria. Às vezes na carne, às vezes fora dela, na garganta -e agora e sempre, o gosto do medo, da treva, que parecia doer como um tumor, um câncer, caranguejo medonho que a devorava por dentro, comendo-a pedaço a pedaço, com tenazes que não existiam, mas que ela sentia ou adivinhava.
De repente, sem saber como, a irritação foi embora. Ficou tranqüila. Se pudesse, prolongaria aquela grade móvel que a imobilizava na rua, sob o sol. A cólera de todos -de uma cidade inteira- a rodeava. As buzinas cortavam sua carne, lâminas afiadas de metal e ruído. Um ônibus, queimando óleo, parecia uma chaleira, fumegando. Tudo isso que tanto a endoidecia se transformava agora numa espécie de pique que a protegia de si mesma, numa plataforma móvel para o salto em direção ao nada. Podia ficar ali o resto da vida, sem compromissos, sem sair de lugar nenhum para ir a outro nenhum lugar.
Teve uma idéia idiota: gostaria que uma betoneira imensa, passando por cima de carros e gente, despejasse toneladas de concreto, imobilizando tudo e todos, como estátuas de pedra, sem direito ao som e ao movimento.
O pior é que, de vez em quando, o carro andava, era obrigado a andar. Ela, então, abandonava a alucinação e rolava no ódio. Vontade de empurrar o carro com os joelhos. De gritar.
Gritou:
- Porra!
Manuel fingiu que não ouviu. Respeitava a patroa, chegava a gostar dela. Não sabia por que sentia pena daquela mulher. Mas não podia fazer nada, nem na vida nem no trânsito: os carros formavam uma parede compacta que impedia o avanço.
Ela tomou a decisão:
- Vou saltar. Vou mesmo a pé. Você me apanha mais tarde no lugar de sempre.
Quando botou o pé no asfalto, o calor subiu pelas pernas. Melhor assim. Cortou em ziguezague a pista cheia de carros e alcançou o outro lado da praça. Havia uma galeria que dava acesso a outra rua. Estava perto do consultório.
Andou devagar, começava a sentir um vazio dentro dela, vontade de não ir mais ao médico. Passou por uma loja de artigos importados, havia um aparelho de televisão ligado. Ela viu na tela um rosto de mulher.
Pensou: - Os óculos são iguais aos meus!
Parou um instante e descobriu, atrás do monitor, a pequenina câmera de circuito interno. Uma luzinha vermelha indicava que a máquina estava ligada. Só então percebeu que a mulher, ali na tela do monitor, era ela própria. Passou a mão pelos cabelos e viu no aparelho o seu gesto. Aproximou-se mais. Não distinguia os traços do rosto, apenas a forma da cabeça, os óculos que brilhavam um pouco, apesar de escuros. Atrás dela passavam pessoas. Um garoto também descobriu o monitor e ficou a seu lado, dando acenos para a câmera. Ela sorriu. O garoto foi embora.
Olhou para os lados, ninguém reparava. Então tomou coragem e levantou a mão. Fez um cumprimento para si mesma. Um aceno amigo, que podia ser um "oi" ou um "até breve". Talvez um adeus.
- O médico que vá à merda!
Tomou o primeiro táxi que passou. O motorista perguntou o caminho. Ela pediu:
- O mais complicado.



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