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CARLOS HEITOR CONY
Mulher em trânsito
Colocou os óculos escuros e
se olhou no espelho. Achava-se bonita assim. Parecia Melina
Mercouri em "Fedra", numa cena
em que a atriz grega aparece de
turbante branco, muito digna e
sofrida, para enfrentar uma greve
de operários na fábrica do marido. Nunca esquecera aquela cena.
Ouviu o ruído do carro que estacionava à porta da frente.
Manuel abriu-lhe a porta traseira do Galaxie prateado, deu a
volta pela frente e tomou o volante.
- Vamos pegar trânsito difícil,
comentou ele. Está tudo entupido.
Conhecia o trajeto do médico de
todas as semanas. Quando Gracinha, sua mulher, dissera que a
patroa ia ao analista, ele estranhou:
- Ela esteve lá na segunda-feira!
- Parece que piorou. Teve pesadelo outra vez.
Manuel fez um "Ah!", compreendendo. Todos compreendiam. Ou melhor: não compreendiam nada.
Tal como previra, dois quarteirões depois, o trânsito ficou embananado. Com esforço e paciência, conseguiu chegar até o centro.
Mas pegou um congestionamento
monstro nas proximidades da
praça da República. Por azar, o
sol estava forte naquele final de
tarde dos anos 60.
- Ligo o ar refrigerado?, perguntou Manuel, voltando o rosto
para trás.
Ela respondeu com um som estranho, metade gemido, metade
grito.
- Não.
Sentia obrigação de sofrer o
abafamento do carro, o calor da
tarde. A cabeça rodava, raiva dela mesma. O que fazia ali, prisioneira naquela jaula de motores ligados, deitando fumaça e cheiro
de gasolina? Quem era ela, afinal?
Uma mulher de 40 anos, bem casada, mãe de dois filhos, dona de
sua vida. E por que aquele médico, aquele tratamento que nunca
acabava? Por que os pesadelos, os
suores frios? O que estava errado
nela?
Marcelo dava-lhe tudo, um marido respeitável, gentil, até mesmo na cama era um senhor homem. Não, não podia se queixar.
Tinha tudo, não precisava de nada, mas sofria. Às vezes na carne,
às vezes fora dela, na garganta
-e agora e sempre, o gosto do
medo, da treva, que parecia doer
como um tumor, um câncer, caranguejo medonho que a devorava por dentro, comendo-a pedaço
a pedaço, com tenazes que não
existiam, mas que ela sentia ou
adivinhava.
De repente, sem saber como, a
irritação foi embora. Ficou tranqüila. Se pudesse, prolongaria
aquela grade móvel que a imobilizava na rua, sob o sol. A cólera
de todos -de uma cidade inteira- a rodeava. As buzinas cortavam sua carne, lâminas afiadas
de metal e ruído. Um ônibus,
queimando óleo, parecia uma
chaleira, fumegando. Tudo isso
que tanto a endoidecia se transformava agora numa espécie de
pique que a protegia de si mesma,
numa plataforma móvel para o
salto em direção ao nada. Podia
ficar ali o resto da vida, sem compromissos, sem sair de lugar nenhum para ir a outro nenhum lugar.
Teve uma idéia idiota: gostaria
que uma betoneira imensa, passando por cima de carros e gente,
despejasse toneladas de concreto,
imobilizando tudo e todos, como
estátuas de pedra, sem direito ao
som e ao movimento.
O pior é que, de vez em quando,
o carro andava, era obrigado a
andar. Ela, então, abandonava a
alucinação e rolava no ódio. Vontade de empurrar o carro com os
joelhos. De gritar.
Gritou:
- Porra!
Manuel fingiu que não ouviu.
Respeitava a patroa, chegava a
gostar dela. Não sabia por que
sentia pena daquela mulher. Mas
não podia fazer nada, nem na vida nem no trânsito: os carros formavam uma parede compacta
que impedia o avanço.
Ela tomou a decisão:
- Vou saltar. Vou mesmo a pé.
Você me apanha mais tarde no
lugar de sempre.
Quando botou o pé no asfalto, o
calor subiu pelas pernas. Melhor
assim. Cortou em ziguezague a
pista cheia de carros e alcançou o
outro lado da praça. Havia uma
galeria que dava acesso a outra
rua. Estava perto do consultório.
Andou devagar, começava a
sentir um vazio dentro dela, vontade de não ir mais ao médico.
Passou por uma loja de artigos
importados, havia um aparelho
de televisão ligado. Ela viu na tela
um rosto de mulher.
Pensou: - Os óculos são iguais
aos meus!
Parou um instante e descobriu,
atrás do monitor, a pequenina
câmera de circuito interno. Uma
luzinha vermelha indicava que a
máquina estava ligada. Só então
percebeu que a mulher, ali na tela
do monitor, era ela própria. Passou a mão pelos cabelos e viu no
aparelho o seu gesto. Aproximou-se mais. Não distinguia os traços
do rosto, apenas a forma da cabeça, os óculos que brilhavam um
pouco, apesar de escuros. Atrás
dela passavam pessoas. Um garoto também descobriu o monitor e
ficou a seu lado, dando acenos
para a câmera. Ela sorriu. O garoto foi embora.
Olhou para os lados, ninguém
reparava. Então tomou coragem
e levantou a mão. Fez um cumprimento para si mesma. Um aceno amigo, que podia ser um "oi"
ou um "até breve". Talvez um
adeus.
- O médico que vá à merda!
Tomou o primeiro táxi que passou. O motorista perguntou o caminho. Ela pediu:
- O mais complicado.
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