São Paulo, sábado, 12 de junho de 2010

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CRÍTICA REPORTAGEM

Viagem de Callado ao Xingu origina relato sensacional

Relançamento investiga labirintos do sumiço do coronel Fawcett no país

MARCELO LEITE
DE SÃO PAULO

É preciso ser de ferro, ou de direita (mesmo na paradoxal versão comunista, como a do deputado federal Aldo Rebelo, do PC do B de SP), para não se solidarizar com os índios brasileiros.
Esta reportagem sensacional -no mais sóbrio sentido da palavra- de Antonio Callado abriu espaço para tal generosidade no jornalismo contemporâneo nacional.
E também na literatura, ao preparar o caminho para outro clássico do autor, o romance "Quarup". Só isso já seria razão de sobra para ler "O Esqueleto da Lagoa Verde", 57 anos depois de publicado, nesta reedição encorpada com posfácios de Davi Arrigucci Jr. e Mauricio Stycer. Há mais, porém.
O jornalista multimídia de hoje encontrará no volumezinho uma amostra de quanto se pode realizar com três esferográficas e um caderno espiral de 46 páginas. Além, decerto, de olhos abertos, muita pesquisa -erudição mesmo, no caso de Callado-, alguma sorte e uma boa história.
Em 1952, Callado viajou ao rio Culuene, nas cabeceiras do Xingu, para visitar o suposto local de assassinato do legendário explorador britânico Percy Fawcett. Foi acompanhado de Orlando Villas Boas e Brian Fawcett (filho do coronel), a convite de Assis Chateaubriand, empresário de comunicação concorrente do jornal para o qual Callado trabalhava ("Correio da Manhã"). Callado soube aproveitar a chance paradoxal.

HOMICÍDIO ERRADO
Das mãos do escritor saltou a reportagem nada convencional. Reticente e lacônica, por vezes. Labiríntica, com assinalam Arrigucci e Stycer, nas voltas que dá em torno de Fawcett e dos ossos que não eram seus, dos índios calapalos que confessam o homicídio errado, do sertanista sentimental e do herdeiro fleumático que se fixam em teses duvidosas.
O repórter questiona a todos e se questiona, inquieto com o emaranhado de improbabilidades, pistas falsas e clichês aventureiros. A reportagem centrada no misterioso Fawcett se descobre então como manifesto indigenista. Mais, como libelo pela criação do parque nacional sonhado por Villas Boas, que se materializaria uma década depois.
Ainda hoje está aí o Parque Indígena do Xingu, um monumento multiculturalista que marcou o imaginário nacional nos anos 1960. Para Callado, os britânicos haviam erguido um império sobre o alicerce da própria superioridade encenada diante dos povos de cor.
O "fardo do homem branco" de que falava o famigerado poema de Rudyard Kipling incluía exibir-se como civilizado para dar exemplo aos povos taciturnos, "meio-demônios e meio-crianças". O Brasil mestiço tem a oportunidade e a obrigação de desviar-se para uma versão melhor de civilização: "Não se faz uma nação envergando um dinner-jacket todas as noites e mantendo os nativos em estado de humildade".
Callado embrenhou-se em Mato Grosso, desencontrou-se de Fawcett e deu com a "África interior". Gostou dos homens e da paisagem. Um mundo escuro que o jornal e a literatura do presente relutam em visitar, abrindo um flanco do tamanho de metade do país para a destruição do que temos de melhor.


ESQUELETO NA LAGOA VERDE

AUTOR Antonio Callado
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 36 (160 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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