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NELSON ASCHER
Poetas do mundo inteiro, uni-vos
A história internacional
da poesia moderna, um mapeamento dinâmico que dê conta
das inúmeras escolas, tendências,
estilos, que faça o levantamento
exaustivo das linhas de força que
se cruzaram através do espaço e
do tempo, detectando as influências e afinidades menos previsíveis e explicando os diálogos e parentescos mais enigmáticos, ainda está por ser escrita.
Os eruditos e especialistas, embora continuem discutindo quando é que a modernidade poética
se iniciou, não conseguem chegar
a um consenso, entre outros motivos, porque tampouco existe uma
definição consensual do que seja
a modernidade em geral e a literária em particular. Quem lhe
inaugurou os fundamentos, William Blake, quando em suas criações visionárias deixou de lado os
recursos habituais para lançar
mão das cadências que a prosa da
Bíblia inglesa oferecia, ou Charles
Baudelaire, que batizou alguns
contos breves e crônicas que escrevera de "poemas em prosa"?
Se ambos usaram seus achados
para fustigar as transformações
que, impelidas pela economia e
pela tecnologia, alteravam então
a face do planeta, Walt Whitman,
pouco depois do segundo, seguiu
o exemplo do primeiro para, com
seus versos livres, celebrando o
mundo novo que surgia no Novo
Mundo, transformar-se no precursor de poetas como Fernando
Pessoa, García Lorca e Pablo Neruda.
O crítico americano Harold
Bloom ancorou seguramente no
romantismo inglês a ruptura literária com o passado que mais ou
menos coincide com a Revolução
Industrial, enquanto o mexicano
Octavio Paz encontrou seus primeiros sinais num ciclo de sonetos onde Gérard de Nerval leva
Cristo a negar a existência de
Deus, e o alemão Walter Benjamin a localizou na revolução arquitetônica e demográfica que fez
de Paris uma metrópole qualitativamente diferente de quantas a
antecederam.
Para complicar, insistindo que
tudo que unia os poetas recentes
aos antigos e arcaicos era mais do
que aquilo que os apartava, Paul
de Man, um belga radicado no
EUA, viu na própria expressão
"poesia moderna" uma contradição dificilmente resolúvel.
Independentemente de qual
desses pontos de vista se escolha
ou como se qualifique o que poetas têm feito nos últimos cem ou
150 anos, mesmo quem duvide de
sua descontinuidade com o que se
fazia antes admitirá que, se não
cada poema individual, seguramente o conjunto de todos os escritos a partir de algum ponto no
século 19 apresenta traços únicos.
O primeiro deles é sua extensão
geográfica. O barroco, que fora
uma escola suficientemente internacional para se manifestar em
quase toda a Europa e em suas
colônias, não transcendeu, contudo, os limites da cristandade católica e protestante, não influenciou
poetas muçulmanos, hinduístas
ou budistas e mal chegou aos da
cristandade ortodoxa. O romantismo, no qual se embutia o projeto iluminista de um mundo de
nações independentes, alcançou,
à sua maneira, grande parte do
planeta. Foi apenas no último século e meio que, graças às invenções de James Watt, Robert Fulton e Samuel Morse, a poesia ocidental exportou para toda parte a
homogeneidade de sua diversidade, importando ao mesmo tempo
o que povos cada vez menos remotos tinham a lhe oferecer.
Há uma associação evidente
entre tais intercâmbios e a primeira globalização, um processo
que, principiando a sério em
meados do século retrasado, foi
interrompido em 1914 e impedido
de prosseguir pela crise de 1929 e
pela eclosão da Segunda Guerra
antes de ter de enfrentar os obstáculos de um mundo clivado pela
Guerra Fria. Sucede, porém, que a
globalização artística não sofreu
os reveses da econômica, de modo
que, hoje em dia, boa parte das
tendências e estilos se apresenta
em praticamente todos os países e
há mais variedade em cada um
deles do que entre eles.
É interessante observar que, se
essa diversidade se impôs como
um subproduto de fatores econômicos e tecnológicos, ela às vezes
se acelerou devido a escolhas político-ideológicas.
Algumas das principais entre
estas, seja nas artes, seja especificamente na poesia, foram um
desdobramento amplo e profundo da Revolução Russa. Não há,
no entanto, como entender o fenômeno sem esmiuçar algo da
sua trajetória anterior.
O nacionalismo romântico levara seus seguidores a estudarem
estratos inexplorados da cultura
popular de seus compatriotas e,
logo em seguida, a alta cultura se
abriu às descobertas feitas por filólogos, lingüistas e folcloristas.
Os poetas de alguns países o fizeram mais que o de outros. As canções e baladas compostas e repetidas por camponeses iletrados
exerceram um fascínio mais forte
sobre ingleses, alemães ou russos
do que sobre franceses, italianos
ou portugueses. Assim, as formas
fixas que num lugar derivavam
das tradições cultas e aristocráticas, em outros se associaram a
origens populares meio reais,
meio inventadas.
Quando, após 1917, a Rússia se
tornou o primeiro país a elaborar
doutrinas oficiais que orientariam as artes, foi no populismo
romântico que ela se inspirou.
Como os bolcheviques entenderam melhor que seus rivais, por
um lado, que o mundo vinha se
integrando e, por outro, o potencial propagandístico (não só) da
literatura, eles trataram de impor
dentro de suas fronteiras e de promover fora delas modelos literários que, adotados no mundo inteiro por seus simpatizantes, deram à luz uma rede transnacional de escritores e poetas. Poucas
coisas contribuíram mais para a
globalização cultural do que essa
Primeira Internacional Literária.
Se nada catastrófico acontecer nos próximos dias, esta coluna continua na semana que vem.
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