São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2004

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NELSON ASCHER

Poetas do mundo inteiro, uni-vos

A história internacional da poesia moderna, um mapeamento dinâmico que dê conta das inúmeras escolas, tendências, estilos, que faça o levantamento exaustivo das linhas de força que se cruzaram através do espaço e do tempo, detectando as influências e afinidades menos previsíveis e explicando os diálogos e parentescos mais enigmáticos, ainda está por ser escrita.
Os eruditos e especialistas, embora continuem discutindo quando é que a modernidade poética se iniciou, não conseguem chegar a um consenso, entre outros motivos, porque tampouco existe uma definição consensual do que seja a modernidade em geral e a literária em particular. Quem lhe inaugurou os fundamentos, William Blake, quando em suas criações visionárias deixou de lado os recursos habituais para lançar mão das cadências que a prosa da Bíblia inglesa oferecia, ou Charles Baudelaire, que batizou alguns contos breves e crônicas que escrevera de "poemas em prosa"?
Se ambos usaram seus achados para fustigar as transformações que, impelidas pela economia e pela tecnologia, alteravam então a face do planeta, Walt Whitman, pouco depois do segundo, seguiu o exemplo do primeiro para, com seus versos livres, celebrando o mundo novo que surgia no Novo Mundo, transformar-se no precursor de poetas como Fernando Pessoa, García Lorca e Pablo Neruda.
O crítico americano Harold Bloom ancorou seguramente no romantismo inglês a ruptura literária com o passado que mais ou menos coincide com a Revolução Industrial, enquanto o mexicano Octavio Paz encontrou seus primeiros sinais num ciclo de sonetos onde Gérard de Nerval leva Cristo a negar a existência de Deus, e o alemão Walter Benjamin a localizou na revolução arquitetônica e demográfica que fez de Paris uma metrópole qualitativamente diferente de quantas a antecederam.
Para complicar, insistindo que tudo que unia os poetas recentes aos antigos e arcaicos era mais do que aquilo que os apartava, Paul de Man, um belga radicado no EUA, viu na própria expressão "poesia moderna" uma contradição dificilmente resolúvel.
Independentemente de qual desses pontos de vista se escolha ou como se qualifique o que poetas têm feito nos últimos cem ou 150 anos, mesmo quem duvide de sua descontinuidade com o que se fazia antes admitirá que, se não cada poema individual, seguramente o conjunto de todos os escritos a partir de algum ponto no século 19 apresenta traços únicos.
O primeiro deles é sua extensão geográfica. O barroco, que fora uma escola suficientemente internacional para se manifestar em quase toda a Europa e em suas colônias, não transcendeu, contudo, os limites da cristandade católica e protestante, não influenciou poetas muçulmanos, hinduístas ou budistas e mal chegou aos da cristandade ortodoxa. O romantismo, no qual se embutia o projeto iluminista de um mundo de nações independentes, alcançou, à sua maneira, grande parte do planeta. Foi apenas no último século e meio que, graças às invenções de James Watt, Robert Fulton e Samuel Morse, a poesia ocidental exportou para toda parte a homogeneidade de sua diversidade, importando ao mesmo tempo o que povos cada vez menos remotos tinham a lhe oferecer.
Há uma associação evidente entre tais intercâmbios e a primeira globalização, um processo que, principiando a sério em meados do século retrasado, foi interrompido em 1914 e impedido de prosseguir pela crise de 1929 e pela eclosão da Segunda Guerra antes de ter de enfrentar os obstáculos de um mundo clivado pela Guerra Fria. Sucede, porém, que a globalização artística não sofreu os reveses da econômica, de modo que, hoje em dia, boa parte das tendências e estilos se apresenta em praticamente todos os países e há mais variedade em cada um deles do que entre eles.
É interessante observar que, se essa diversidade se impôs como um subproduto de fatores econômicos e tecnológicos, ela às vezes se acelerou devido a escolhas político-ideológicas.
Algumas das principais entre estas, seja nas artes, seja especificamente na poesia, foram um desdobramento amplo e profundo da Revolução Russa. Não há, no entanto, como entender o fenômeno sem esmiuçar algo da sua trajetória anterior.
O nacionalismo romântico levara seus seguidores a estudarem estratos inexplorados da cultura popular de seus compatriotas e, logo em seguida, a alta cultura se abriu às descobertas feitas por filólogos, lingüistas e folcloristas. Os poetas de alguns países o fizeram mais que o de outros. As canções e baladas compostas e repetidas por camponeses iletrados exerceram um fascínio mais forte sobre ingleses, alemães ou russos do que sobre franceses, italianos ou portugueses. Assim, as formas fixas que num lugar derivavam das tradições cultas e aristocráticas, em outros se associaram a origens populares meio reais, meio inventadas.
Quando, após 1917, a Rússia se tornou o primeiro país a elaborar doutrinas oficiais que orientariam as artes, foi no populismo romântico que ela se inspirou. Como os bolcheviques entenderam melhor que seus rivais, por um lado, que o mundo vinha se integrando e, por outro, o potencial propagandístico (não só) da literatura, eles trataram de impor dentro de suas fronteiras e de promover fora delas modelos literários que, adotados no mundo inteiro por seus simpatizantes, deram à luz uma rede transnacional de escritores e poetas. Poucas coisas contribuíram mais para a globalização cultural do que essa Primeira Internacional Literária.


Se nada catastrófico acontecer nos próximos dias, esta coluna continua na semana que vem.


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