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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Os filhos de Rawls
Aceitar as cotas implica não premiar os indivíduos por aquilo que eles valem, mas pelo que naturalmente são
A DISCUSSÃO das cotas raciais
no Brasil é interessante. Desde logo porque revela e esconde em partes iguais. Um exemplo:
será legítimo discriminar positivamente os negros no acesso ao ensino
universitário? Uma resposta afirmativa implica discriminar negativamente outros: se os recursos não
são ilimitados, alguém terá de ficar
de fora, muitas vezes com competência superior. E não é injusto que
sejam os brancos, apenas por ser
brancos, os primeiros sacrificados?
Não, se tivermos na cabeça "Uma
Teoria da Justiça", que Rawls publicou em 1971. Foi um terremoto.
Teoricamente, é possível afirmar
que existe uma ciência política antes
de Rawls e outra depois de Rawls.
Vários autores construíram carreira
em diálogo com ele. E Rawls, honra
seja feita, respondeu sempre aos
seus críticos e, até ao final da vida,
em 2002, foi corrigindo aspectos da
sua teoria. Um caso de seriedade intelectual.
Mas as conseqüências práticas foram mais profundas ainda. A teoria
da justiça não defende, tão somente,
que as desigualdades serão aceitáveis para melhorar o bem-estar dos
mais desfavorecidos (o famoso "segundo princípio", que os igualitários
adoram). A teoria da justiça vai mais
longe ao negar, explicitamente,
qualquer noção de mérito para premiar (ou punir) os atos dos indivíduos. Rawls afirma: se o lugar que
ocupamos em sociedade é uma espécie de loteria (ninguém é responsável por nascer pobre, ou preto, ou
anão), falar de mérito é moralmente
vácuo. O resto depende: ou aceitamos as premissas da teoria e agimos
em conformidade, corrigindo; ou,
simplesmente, não.
Eu confesso que não aceito. Sim,
as pessoas podem nascer pobres, negras e anãs. Mas o relevante não é esse fato natural. Relevante é saber o
que as pessoas fazem com esse fato
natural. Porque existe sempre um
espaço de liberdade (e de esforço, e
de responsabilidade) que merece
ser aplaudido (ou não). Aceitar as
cotas, ou seja, aceitar que o mérito
deixa de ser relevante no acesso à
universidade, implica não premiar
os indivíduos por aquilo que eles valem, mas por aquilo que eles naturalmente são, uma forma de primitivismo. Os resultados intelectuais
são imediatos: o abandono do esforço individual e de uma sociedade
mais cultivada.
Mas existe um aspecto moral
usualmente ignorado. Rawls reclama-se herdeiro de Kant. Mas Rawls
esqueceu que, para Kant, o paternalismo era a pior forma de opressão. A
introdução de cotas raciais irá tratar
uma "raça" como uniforme e, pior
ainda, uniformemente inferior, como se a cor da pele fosse a exibição
pública de uma deficiência que desperta compaixão no legislador.
Porque tudo se resume no essencial: ou as pessoas são tratadas como
iguais; ou, pelo contrário, tratamos
desigualmente quem já reconhecemos como desigual. Se eu fosse negro, e desejasse ser reconhecido pelo
meu trabalho (e não pela minha pele), eu não gostaria que a minha individualidade como ser humano fosse
diluída pelo paternalismo do Estado. Mas os filhos de Rawls sempre
gostaram da mão do dono sobre a
pele.
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