São Paulo, quarta-feira, 12 de julho de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Os filhos de Rawls

Aceitar as cotas implica não premiar os indivíduos por aquilo que eles valem, mas pelo que naturalmente são

A DISCUSSÃO das cotas raciais no Brasil é interessante. Desde logo porque revela e esconde em partes iguais. Um exemplo: será legítimo discriminar positivamente os negros no acesso ao ensino universitário? Uma resposta afirmativa implica discriminar negativamente outros: se os recursos não são ilimitados, alguém terá de ficar de fora, muitas vezes com competência superior. E não é injusto que sejam os brancos, apenas por ser brancos, os primeiros sacrificados?
Não, se tivermos na cabeça "Uma Teoria da Justiça", que Rawls publicou em 1971. Foi um terremoto. Teoricamente, é possível afirmar que existe uma ciência política antes de Rawls e outra depois de Rawls. Vários autores construíram carreira em diálogo com ele. E Rawls, honra seja feita, respondeu sempre aos seus críticos e, até ao final da vida, em 2002, foi corrigindo aspectos da sua teoria. Um caso de seriedade intelectual.
Mas as conseqüências práticas foram mais profundas ainda. A teoria da justiça não defende, tão somente, que as desigualdades serão aceitáveis para melhorar o bem-estar dos mais desfavorecidos (o famoso "segundo princípio", que os igualitários adoram). A teoria da justiça vai mais longe ao negar, explicitamente, qualquer noção de mérito para premiar (ou punir) os atos dos indivíduos. Rawls afirma: se o lugar que ocupamos em sociedade é uma espécie de loteria (ninguém é responsável por nascer pobre, ou preto, ou anão), falar de mérito é moralmente vácuo. O resto depende: ou aceitamos as premissas da teoria e agimos em conformidade, corrigindo; ou, simplesmente, não.
Eu confesso que não aceito. Sim, as pessoas podem nascer pobres, negras e anãs. Mas o relevante não é esse fato natural. Relevante é saber o que as pessoas fazem com esse fato natural. Porque existe sempre um espaço de liberdade (e de esforço, e de responsabilidade) que merece ser aplaudido (ou não). Aceitar as cotas, ou seja, aceitar que o mérito deixa de ser relevante no acesso à universidade, implica não premiar os indivíduos por aquilo que eles valem, mas por aquilo que eles naturalmente são, uma forma de primitivismo. Os resultados intelectuais são imediatos: o abandono do esforço individual e de uma sociedade mais cultivada.
Mas existe um aspecto moral usualmente ignorado. Rawls reclama-se herdeiro de Kant. Mas Rawls esqueceu que, para Kant, o paternalismo era a pior forma de opressão. A introdução de cotas raciais irá tratar uma "raça" como uniforme e, pior ainda, uniformemente inferior, como se a cor da pele fosse a exibição pública de uma deficiência que desperta compaixão no legislador.
Porque tudo se resume no essencial: ou as pessoas são tratadas como iguais; ou, pelo contrário, tratamos desigualmente quem já reconhecemos como desigual. Se eu fosse negro, e desejasse ser reconhecido pelo meu trabalho (e não pela minha pele), eu não gostaria que a minha individualidade como ser humano fosse diluída pelo paternalismo do Estado. Mas os filhos de Rawls sempre gostaram da mão do dono sobre a pele.


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