São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

A infantilização do espectador

Pode ser que eu esteja ficando velho, mas o que mais me impressionou na Bienal deste ano foi a infantilidade. É verdade que as generalizações costumam ser ilusórias e injustas. É claro que sempre haverá exceções. Mas, no geral, é espantoso como a arte, a julgar pela primeira vista da seleção reunida no Ibirapuera, dá a impressão de ter sofrido um processo de infantilização.
Não estou falando das aparências, das obras que têm que gritar para aparecer, de retratos de bonecas, de animais empalhados, de fuscas e aviõezinhos pendurados. A infantilização é um processo profundo, que se manifesta nas próprias questões que os trabalhos levantam e na sua falta de autonomia: as obras tentam dizer coisas que já foram ditas, melhor e alhures, e que podem ser ditas, com mais propriedade, eficiência e impacto, por outros meios. A arte foi reduzida a ilustração.
Nesse cenário, dá para entender o que move um fotógrafo como o alemão Thomas Struth, incluído na mostra com obras que não estão entre as suas melhores, mas que, ainda assim, revelam um ponto de vista contrário ao da ilustração predominante. As fotos de Struth não ilustram nada. Seguindo uma certa tradição recente da fotografia alemã, elas dão significado ao insignificante e elevam a técnica a significante, de modo que a luz e a textura podem ser tão ou mais importantes do que os objetos fotografados.
Isto posto, também não se pode dizer que estejamos diante de um mero encanto da técnica. Na sua aparente frieza, essas fotos dizem alguma coisa. Acontece que essa coisa não é uma idéia exterior à foto, uma idéia que a imagem viria representar como alegoria; é, antes, uma idéia criada pela própria imagem. E aí está toda a diferença.
Por exemplo: nas belas fotos de surfistas da americana Catherine Opie, também expostas na Bienal, fica evidente a vontade de usar as imagens como metáforas. Herdeira direta das incríveis fotos de praia de Joel Meyerowitz, em que pessoas distantes não são mais do que pontos e ciscos perdidos no meio de uma paisagem etérea, Opie faz dos seus pequenos surfistas à espera de ondas na vastidão do mar metáforas óbvias da insignificância e da solidão do homem.
Inversamente, nas imagens de Struth (assim como nas de Meyerowitz e de tantos outros grandes fotógrafos) não há essa obviedade, porque a idéia não é exterior à foto. Desse ponto de vista, "As Linhas de Nazca 1" talvez seja a única exceção entre suas obras expostas na Bienal, por se prestar a um esclarecimento ilustrativo e eloqüente do próprio trabalho do fotógrafo.
No canto inferior esquerdo da imagem, um turista ou fotógrafo amador registra com sua câmera a vastidão do deserto de Nazca, no Peru, com as célebres e enigmáticas linhas, que no entanto não chegam a formar nenhum desenho, correm como estradas aleatórias pela aridez do vazio, do nada para lugar nenhum. Embora o fotógrafo esteja no alto de um morro, ainda assim não está longe o suficiente para que as linhas sejam percebidas como algo além de simples traços perdidos no nada (se estivesse num balão, poderíamos ver os desenhos que elas formam).
A distância exata do objeto, longe, mas nem tanto, não permite criar um significado exterior à imagem, ela já não é simples alegoria ou documento de algo exterior a ela. Ao esvaziar a cena de significados, Struth consegue produzir uma imagem que já não é registro nem ilustração, uma imagem capaz de criar idéias e sensações na mente do espectador, em vez de levá-lo simplesmente a reconhecê-las. A inteligência está na imagem e não fora dela, não está em algum tipo de trocadilho conceitual ou de manifesto político.
É esse o maior problema de um filme recente, como "A Vila", de M. Night Shyamalan. Elogiado por uma parte informada da crítica, o filme faz uma parábola, uma ilustração alegórica de uma idéia demasiado evidente e reconhecível (o medo e o progressivo isolacionismo americano diante do resto do mundo e da violência). Apesar do virtuosismo de suas imagens, o esquematismo da parábola, nesse sentido, é consternador. É como se o filme propusesse ao espectador uma representação tão óbvia, primária e simplista do mundo quanto a que os adultos da história tentam impor às crianças.
Pode não passar de coincidência e de generalização, mas o sentimento de que está no ar um processo de infantilização do espectador (de sua percepção e de seu entendimento das artes), reproduzido tanto pelo filme de Shyamalan como por boa parte das obras selecionadas nesta Bienal, não é encorajador.
As imagens de Struth são um antídoto. No ano passado, por ocasião de uma exposição de suas fotografias no Metropolitan, em Nova York, o museu expôs no hall de entrada uma instalação com os "retratos em vídeo" que o artista realizou entre 1996 e 2002. A câmera se mantinha imóvel, por longos minutos, sobre o rosto de pessoas igualmente imóveis, se não fosse por um eventual piscar de olhos, um ligeiro movimento dos músculos ou pela brisa batendo de repente nos cabelos. A imobilidade móvel era hipnótica. Diante daquelas efígies em primeiro plano, ao mesmo tempo impassíveis e vivas, que o encaravam, o espectador se via confrontado com a sua própria consciência. E, numa espécie de êxtase, era levado a refletir sobre o que elas não lhe diziam, embora estivessem lhe dizendo.


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