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BERNARDO CARVALHO
A infantilização do espectador
Pode ser que eu esteja ficando velho, mas o que mais me
impressionou na Bienal deste ano
foi a infantilidade. É verdade que
as generalizações costumam ser
ilusórias e injustas. É claro que
sempre haverá exceções. Mas, no
geral, é espantoso como a arte, a
julgar pela primeira vista da seleção reunida no Ibirapuera, dá a
impressão de ter sofrido um processo de infantilização.
Não estou falando das aparências, das obras que têm que gritar
para aparecer, de retratos de bonecas, de animais empalhados, de
fuscas e aviõezinhos pendurados.
A infantilização é um processo
profundo, que se manifesta nas
próprias questões que os trabalhos levantam e na sua falta de
autonomia: as obras tentam dizer
coisas que já foram ditas, melhor
e alhures, e que podem ser ditas,
com mais propriedade, eficiência
e impacto, por outros meios. A arte foi reduzida a ilustração.
Nesse cenário, dá para entender
o que move um fotógrafo como o
alemão Thomas Struth, incluído
na mostra com obras que não estão entre as suas melhores, mas
que, ainda assim, revelam um
ponto de vista contrário ao da
ilustração predominante. As fotos
de Struth não ilustram nada. Seguindo uma certa tradição recente da fotografia alemã, elas dão
significado ao insignificante e elevam a técnica a significante, de
modo que a luz e a textura podem
ser tão ou mais importantes do
que os objetos fotografados.
Isto posto, também não se pode
dizer que estejamos diante de um
mero encanto da técnica. Na sua
aparente frieza, essas fotos dizem
alguma coisa. Acontece que essa
coisa não é uma idéia exterior à
foto, uma idéia que a imagem viria representar como alegoria; é,
antes, uma idéia criada pela própria imagem. E aí está toda a diferença.
Por exemplo: nas belas fotos de
surfistas da americana Catherine
Opie, também expostas na Bienal, fica evidente a vontade de
usar as imagens como metáforas.
Herdeira direta das incríveis fotos
de praia de Joel Meyerowitz, em
que pessoas distantes não são
mais do que pontos e ciscos perdidos no meio de uma paisagem
etérea, Opie faz dos seus pequenos
surfistas à espera de ondas na
vastidão do mar metáforas óbvias da insignificância e da solidão do homem.
Inversamente, nas imagens de
Struth (assim como nas de Meyerowitz e de tantos outros grandes
fotógrafos) não há essa obviedade, porque a idéia não é exterior à
foto. Desse ponto de vista, "As Linhas de Nazca 1" talvez seja a
única exceção entre suas obras
expostas na Bienal, por se prestar
a um esclarecimento ilustrativo e
eloqüente do próprio trabalho do
fotógrafo.
No canto inferior esquerdo da
imagem, um turista ou fotógrafo
amador registra com sua câmera
a vastidão do deserto de Nazca,
no Peru, com as célebres e enigmáticas linhas, que no entanto
não chegam a formar nenhum
desenho, correm como estradas
aleatórias pela aridez do vazio,
do nada para lugar nenhum. Embora o fotógrafo esteja no alto de
um morro, ainda assim não está
longe o suficiente para que as linhas sejam percebidas como algo
além de simples traços perdidos
no nada (se estivesse num balão,
poderíamos ver os desenhos que
elas formam).
A distância exata do objeto,
longe, mas nem tanto, não permite criar um significado exterior à
imagem, ela já não é simples alegoria ou documento de algo exterior a ela. Ao esvaziar a cena de
significados, Struth consegue produzir uma imagem que já não é
registro nem ilustração, uma
imagem capaz de criar idéias e
sensações na mente do espectador, em vez de levá-lo simplesmente a reconhecê-las. A inteligência está na imagem e não fora
dela, não está em algum tipo de
trocadilho conceitual ou de manifesto político.
É esse o maior problema de um
filme recente, como "A Vila", de
M. Night Shyamalan. Elogiado
por uma parte informada da crítica, o filme faz uma parábola,
uma ilustração alegórica de uma
idéia demasiado evidente e reconhecível (o medo e o progressivo
isolacionismo americano diante
do resto do mundo e da violência). Apesar do virtuosismo de
suas imagens, o esquematismo da
parábola, nesse sentido, é consternador. É como se o filme propusesse ao espectador uma representação tão óbvia, primária e simplista do mundo quanto a que os
adultos da história tentam impor
às crianças.
Pode não passar de coincidência e de generalização, mas o sentimento de que está no ar um processo de infantilização do espectador (de sua percepção e de seu
entendimento das artes), reproduzido tanto pelo filme de Shyamalan como por boa parte das
obras selecionadas nesta Bienal,
não é encorajador.
As imagens de Struth são um
antídoto. No ano passado, por
ocasião de uma exposição de suas
fotografias no Metropolitan, em
Nova York, o museu expôs no hall
de entrada uma instalação com
os "retratos em vídeo" que o artista realizou entre 1996 e 2002. A
câmera se mantinha imóvel, por
longos minutos, sobre o rosto de
pessoas igualmente imóveis, se
não fosse por um eventual piscar
de olhos, um ligeiro movimento
dos músculos ou pela brisa batendo de repente nos cabelos. A imobilidade móvel era hipnótica.
Diante daquelas efígies em primeiro plano, ao mesmo tempo
impassíveis e vivas, que o encaravam, o espectador se via confrontado com a sua própria consciência. E, numa espécie de êxtase, era
levado a refletir sobre o que elas
não lhe diziam, embora estivessem lhe dizendo.
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