São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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BIA ABRAMO

Os milagres do esporte


Acabaram as eleições, e o "grande tema" agora é a preparação do Brasil para os Jogos de 2007

ANTIGAMENTE era o trabalho que enobrecia o homem; hoje a tarefa de conferir alguma dignidade à patética existência humana cabe a outras atividades, como o esporte. É a única esperança, para jovens carentes, ser reconhecido como atleta e, por isso, resgatado da miséria ou "das ruas", dizem.
Acabaram-se as eleições e, portanto, o "grande tema" midiático é a preparação do Brasil para sediar os Jogos Panamericanos de 2007. De agora até o meio do ano que vem, seremos bombardeados com histórias exemplares de como o esporte é a solução mágica para os problemas sociais, emocionais, existenciais e, claro, também, financeiros da juventude brasileira. Foi a Globo quem deu a largada, neste último domingo, com uma reportagem no programa "Fantástico" que vale a pena examinar.
Trata-se das singelas ("emocionantes", adverte o apresentador Zeca Camargo no texto de abertura) histórias de Jonatha Lídia e de Bárbara da Silva Leôncio, dois atletas jovens. Já sabemos de antemão, portanto, que as histórias vão além do registro informativo sobre novos nomes do esporte: elas contêm alta carga de emoção, emoção essa pré-figurada veemente e explicitamente.
Mas é preciso ainda mais: elas devem conter uma moral, como nas fábulas, e devem ter um caráter quase miraculoso, interferindo em questões que, nas palavras do repórter, estão "muito além" das meras vitórias esportivas.
Em outras palavras, vencer no esporte tem o dom de transformar meninos em homens e, sobretudo, resgatar pais perdidos.
O menino Jonatha corre para ser "reconhecido"; se o pai que não chegou a conhecer está inacessível, cabe ao treinador fazer o papel. Então a câmera se aproxima do abraço que o menino dá no técnico e o ouvido todo-poderoso da Globo capta a conversa íntima.
A menina Bárbara quer ser vista pelo pai; graças a um milagre da produção televisiva, a câmera e o microfone -indiscretíssimos ambos- são ágeis para registrar os soluços convulsivos da menina e as desculpas envergonhadas do pai.
Os pais, essas figuras cada vez mais fugidias da contemporaneidade, que se cuidem: lá fora, há uma legião de produtores televisivos bem treinados e prontos para capturá-los onde quer que estejam para transformar lágrimas em audiência.


biabramo.tv@uol.com.br


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