São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2008

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Kremer faz concerto arrebatador

Violinista letão, um dos melhores músicos em atividade, tocou anteontem à noite na Sala São Paulo

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O programa começou com uma espécie de prólogo, a "Aurora", para violino, de Eugène Ysae (1858-1931). Sai do nada e faz nascer o sol, num registro pré-impressionista que demanda grande virtuosismo. O que nunca foi problema para Gidon Kremer, não só um dos mais prodigiosos violinistas em atividade mas também um dos músicos mais arrojados e interessantes. Nada do que ele toca deixa de ter originalidade, além de convicção musical. Foi o caso nesse retorno à Sala São Paulo, anteontem, acompanhado por três jovens conterrâneos, membros da Kremerata Báltica, que o letão fundou em 1997.
Abrir a noite com Ysae, por exemplo -famoso violinista, a quem César Franck (1822-90) dedicou sua famosa "Sonata"- ganhava outro sentido na seqüência, com o arranjo para violino e piano do "Prelúdio, Fuga e Variação" de Franck.
Ouvida na versão original, para órgão, a música não fica imune às mudanças de gosto que o tempo nos impõe. Está no limite tênue do kitsch, para muitos de nós. Recriada em duo e reimaginada por um músico tão fino, a arte do compositor belga só tem a ganhar.
Kremer toca, muitas vezes, num registro que parece ser menos do que a música pede.
Toca para dentro, quase sem vibrato. Quando se expande, depois, com caraterística intensidade, o efeito é arrebatador.
Em escala menor, essa lição foi introjetada pela violoncelista Giedre Dirvanauskaite e pelo pianista Andrius Zlabys, seus parceiros no "Trio nº 2" de Shostakovich (1906-75).
Aqui chegamos ao coração das trevas do século passado.
Composto em 1944, em homenagem a um amigo recém-falecido, o "Trio" recria e resiste, de dentro, ao pior.
Ainda há pouco tempo, não eram tantos que se entusiasmavam com o sarcasmo de Shostakovich, com suas ironias e sua melancolia, misturados em tramas improváveis. Agora virou consenso que é um dos maiores compositores modernos, definindo seu tempo.
Só as arcadas em "crescendo", de baixo para cima, numa sucessão de pequenos trechos em homofonia já justificavam a noite, e pareciam dizer o que não pode ser dito e que ali só não escutou quem não quis. Foi curioso, depois, entrar no "Quarteto" em dó menor, op. 60, de Brahms (1833-97), com a participação muito especial da violista Ula Ulijona. Dizer que Brahms antecipa Shostakovich não faz sentido; mas nessa noite era a sensação real e irreal, para quem retornava ao "Quarteto" após ouvir o "Trio".
Do lado de lá e do lado de cá da catástrofe, um e outro se entendem, percorrendo labirintos. No centro ficam os músicos, guiados e inspirados por Gidon Kremer, que escuta, entende e toca como ninguém.


GIDON KREMER PIANO QUARTET
Quando: sex., às 20h
Onde: sala Cecília Meireles (lgo. da Lapa, 47, Rio, tel. 0/xx/21/2332-9160); não indicado a menores de 6 anos
Quanto: de R$ 40 a R$ 80
Avaliação: ótimo



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