São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 2006

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NELSON ASCHER

Racismo e anti-racismo

Não é exagero afirmar que a maioria dos ocidentais progressistas, liberais, bem-intencionados, caso tivesse de escolher um pecado como sendo o pior, um único que fosse o pecado dos pecados, votaria no racismo. Qualquer pessoa que, nos limites de nosso universo cultural, pretenda estar do lado do bem, da justiça e da paz evita, tal qual o diabo a cruz, não só o crime em questão como, igualmente, pessoas sobre os quais pairem suspeitas de terem, em algum momento, se associado à sua prática.
Um mínimo de familiaridade com a história e a antropologia basta para comprovar o ineditismo desse clima de opinião, pois, nas sociedades tradicionais e no mundo pré-moderno, algum tipo de diferenciação abrangente e hierárquica entre um "nós" e um "eles" sempre foi antes a regra do que a exceção. Os mais diversos grupos costumavam se ver como os verdadeiros seres humanos em contraposição aos forasteiros, que seriam menos do que os conterrâneos e correligionários, mereceriam menos consideração, bens, propriedade, vida, e nem sequer falariam uma língua, limitando-se, que nem os "bárbaros" e os "hotentotes", a balbuciarem.
O atual anti-racismo de base decorre provavelmente de dois eventos, ambos recentes: o extermínio sistemático dos judeus europeus conhecido como Holocausto e a descolonização, posterior à Segunda Guerra, da África e da Ásia. Campanhas como a dos direitos civis nos EUA dos anos 50/60 ou, depois, aquela em prol dos "sem papéis" (imigrantes clandestinos) na França também contribuíram para tanto, embora em contextos localizados. Tudo aponta, portanto, para uma alteração comportamental influenciada por lições históricas devidamente assimiladas.
Não é, em absoluto, o caso de desmerecer quanto haja de positivo e sincero nesses desdobramentos que têm lá seus paralelos com mudanças tão importantes e nobres de mentalidade como as que levaram, por exemplo, à abolição do trabalho escravo no século 19. Nem por isso convém ignorar que o anti-racismo contemporâneo exibe (ou esconde) muito de confuso. E a confusão começa exatamente com a definição de racismo, ou melhor, com sua vagueza.
O que é, afinal, o racismo? Várias coisas, nem todas coincidentes ou complementares. Acreditar numa hierarquia qualitativa e imutável das raças é, sem dúvida, racista. O oposto disso seria pressupor a igualdade ou equivalência racial, certo? Errado. Pois associar indivíduos a uma raça, mesmo que seja para lhe atribuir seus fatores positivos, tampouco deixa de ser racista. Aliás, sobram estudiosos sérios para os quais o termo "raça", como era usado décadas atrás, envolve um pensamento racista. A rigor, nunca houve consenso acerca da definição de "raça" (o que, no entanto, não impede que o racismo, onde existe, seja perceptível a olho nu).
O conceito de racismo é, por sua vez, tão maleável que chega, num extremo, a ser aplicado a divergências confessionais e disputas territoriais e, no outro, a isentar de seu ônus pessoas ou grupos ostensivamente racistas, porque estes detestam gente que mereceria ser detestada (ou, numa formulação típica, judeus seriam odiados porque são ricos e os negros, porque são pobres, o que implica a presença de bons e maus racismos). Ademais, com pouquíssimas ressalvas, não se pede às vítimas atestadas de pecados alheios que respondam pelos próprios. No sentido amplo, racismo equivaleria a temer ou desrespeitar o "outro", uma formulação que quer, concomitantemente, dizer tudo e nada. No restrito (e mais habitual), não passa de um insulto destinado a estigmatizar e silenciar adversários ideológicos.
Ocorre que, como um sem número de causas em princípio louváveis (autodeterminação nacional, direitos humanos, equilíbrio ecológico), o combate ao racismo, além de comprometido pela dificuldade de lhe circunscrever a meta ou o inimigo, vem sucumbindo a compromissos e manipulações, à politização partidária e à promoção de idéias com as quais não mantém vínculos óbvios. Se existe uma maneira mais eficaz de esvaziar de sentido uma expressão do que usá-la indiscriminadamente, ainda está para ser achada. E quem paga por tal abuso terminológico é -surpresa!- o conjunto de vítimas concretas do racismo evidente.
Se o debate é intricado, a mecânica de sua degradação é relativamente singela. Segundo a visão corrente ou hegemônica de mundo, o racismo, em qualquer uma de suas possíveis definições, é sempre doloso (intencional), jamais culposo, e, parte integrante que é da imensa maquinaria da dominação, opressão, exploração de um mundo inocente, foi inventado e tem sido usado somente por uma parcela reduzida da humanidade, sobretudo pelo homem branco.
Esse homem branco (ou os países afluentes, as classes dominantes etc.) nasce contaminado pelo pecado original, é racista de nascença e culpado até prova em contrário. Enquanto o resto da humanidade permanece, por definição, não-racista, os pecadores originais não têm como sê-lo: eles ou são racistas ou são anti-racistas. Entre eles a culpa constitui uma "batata quente" que, hereditária, precisa ser passada adiante. Carecendo da opção de ser não-racista, o homem branco que queira se livrar do estigma de racista dispõe de uma saída solitária: exibir suas credenciais anti-racistas. Como? Acusando outro homem branco de racista.
Criada assim uma cultura da delação, uma construção pseudojudiciária em cujo âmbito cada envolvido alivia sua pena incriminando os outros, quanto sobra é um jogo de artimanhas retóricas no qual muitos fingem crer, mas de onde a essência que a acusação primeira talvez tivesse se evaporou completamente.


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