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NELSON ASCHER
Racismo e anti-racismo
Não é exagero afirmar que a
maioria dos ocidentais progressistas, liberais, bem-intencionados, caso tivesse de escolher um
pecado como sendo o pior, um
único que fosse o pecado dos pecados, votaria no racismo. Qualquer pessoa que, nos limites de
nosso universo cultural, pretenda
estar do lado do bem, da justiça e
da paz evita, tal qual o diabo a
cruz, não só o crime em questão
como, igualmente, pessoas sobre
os quais pairem suspeitas de terem, em algum momento, se associado à sua prática.
Um mínimo de familiaridade
com a história e a antropologia
basta para comprovar o ineditismo desse clima de opinião, pois,
nas sociedades tradicionais e no
mundo pré-moderno, algum tipo
de diferenciação abrangente e
hierárquica entre um "nós" e um
"eles" sempre foi antes a regra do
que a exceção. Os mais diversos
grupos costumavam se ver como
os verdadeiros seres humanos em
contraposição aos forasteiros, que
seriam menos do que os conterrâneos e correligionários, mereceriam menos consideração, bens,
propriedade, vida, e nem sequer
falariam uma língua, limitando-se, que nem os "bárbaros" e os
"hotentotes", a balbuciarem.
O atual anti-racismo de base
decorre provavelmente de dois
eventos, ambos recentes: o extermínio sistemático dos judeus europeus conhecido como Holocausto e a descolonização, posterior à Segunda Guerra, da África
e da Ásia. Campanhas como a
dos direitos civis nos EUA dos
anos 50/60 ou, depois, aquela em
prol dos "sem papéis" (imigrantes
clandestinos) na França também
contribuíram para tanto, embora
em contextos localizados. Tudo
aponta, portanto, para uma alteração comportamental influenciada por lições históricas devidamente assimiladas.
Não é, em absoluto, o caso de
desmerecer quanto haja de positivo e sincero nesses desdobramentos que têm lá seus paralelos com
mudanças tão importantes e nobres de mentalidade como as que
levaram, por exemplo, à abolição
do trabalho escravo no século 19.
Nem por isso convém ignorar que
o anti-racismo contemporâneo
exibe (ou esconde) muito de confuso. E a confusão começa exatamente com a definição de racismo, ou melhor, com sua vagueza.
O que é, afinal, o racismo? Várias coisas, nem todas coincidentes ou complementares. Acreditar
numa hierarquia qualitativa e
imutável das raças é, sem dúvida,
racista. O oposto disso seria pressupor a igualdade ou equivalência racial, certo? Errado. Pois associar indivíduos a uma raça,
mesmo que seja para lhe atribuir
seus fatores positivos, tampouco
deixa de ser racista. Aliás, sobram
estudiosos sérios para os quais o
termo "raça", como era usado décadas atrás, envolve um pensamento racista. A rigor, nunca
houve consenso acerca da definição de "raça" (o que, no entanto,
não impede que o racismo, onde
existe, seja perceptível a olho nu).
O conceito de racismo é, por sua
vez, tão maleável que chega, num
extremo, a ser aplicado a divergências confessionais e disputas
territoriais e, no outro, a isentar
de seu ônus pessoas ou grupos ostensivamente racistas, porque estes detestam gente que mereceria
ser detestada (ou, numa formulação típica, judeus seriam odiados
porque são ricos e os negros, porque são pobres, o que implica a
presença de bons e maus racismos). Ademais, com pouquíssimas ressalvas, não se pede às vítimas atestadas de pecados alheios
que respondam pelos próprios. No
sentido amplo, racismo equivaleria a temer ou desrespeitar o "outro", uma formulação que quer,
concomitantemente, dizer tudo e
nada. No restrito (e mais habitual), não passa de um insulto
destinado a estigmatizar e silenciar adversários ideológicos.
Ocorre que, como um sem número de causas em princípio louváveis (autodeterminação nacional, direitos humanos, equilíbrio
ecológico), o combate ao racismo,
além de comprometido pela dificuldade de lhe circunscrever a
meta ou o inimigo, vem sucumbindo a compromissos e manipulações, à politização partidária e
à promoção de idéias com as
quais não mantém vínculos óbvios. Se existe uma maneira mais
eficaz de esvaziar de sentido uma
expressão do que usá-la indiscriminadamente, ainda está para
ser achada. E quem paga por tal
abuso terminológico é -surpresa!- o conjunto de vítimas concretas do racismo evidente.
Se o debate é intricado, a mecânica de sua degradação é relativamente singela. Segundo a visão
corrente ou hegemônica de mundo, o racismo, em qualquer uma
de suas possíveis definições, é
sempre doloso (intencional), jamais culposo, e, parte integrante
que é da imensa maquinaria da
dominação, opressão, exploração
de um mundo inocente, foi inventado e tem sido usado somente
por uma parcela reduzida da humanidade, sobretudo pelo homem branco.
Esse homem branco (ou os países afluentes, as classes dominantes etc.) nasce contaminado pelo
pecado original, é racista de nascença e culpado até prova em
contrário. Enquanto o resto da
humanidade permanece, por definição, não-racista, os pecadores
originais não têm como sê-lo: eles
ou são racistas ou são anti-racistas. Entre eles a culpa constitui
uma "batata quente" que, hereditária, precisa ser passada adiante.
Carecendo da opção de ser não-racista, o homem branco que
queira se livrar do estigma de racista dispõe de uma saída solitária: exibir suas credenciais anti-racistas. Como? Acusando outro
homem branco de racista.
Criada assim uma cultura da
delação, uma construção pseudojudiciária em cujo âmbito cada
envolvido alivia sua pena incriminando os outros, quanto sobra
é um jogo de artimanhas retóricas no qual muitos fingem crer,
mas de onde a essência que a acusação primeira talvez tivesse se
evaporou completamente.
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