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São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2003

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MARCELO COELHO

Por trás e por dentro das palavras

Conspiração: mistura de hálitos. Músculo: um camundongo sob a pele. Humilde: próximo da terra. Cretino: cristão. Inteligência: ler nas entrelinhas. Cretino: cristão.
Poderia ser uma série de poemas curtos. Mas as definições acima foram extraídas de um fascinante livro de M. F. Whitaker Salles sobre a origem das palavras, "Dentro do Dentro" (editora Mercuryo). O autor explica, em não mais de uma página, a etimologia de cem palavras, de "afinidade" a "zênite". Para ficar nos exemplos que citei, "conspiração" é uma palavra formada a partir do latim "cum" (junto) e "spirare", soprar. De "spirare" vem espírito, fôlego, sopro, ânimo de vida... que também aparece em "suspirar", "expirar" e "inspirar".
"Músculo", por sua vez, é diminutivo de "mus", rato. Diz o autor que os músculos, "contraindo-se, relaxando-se, esticando a pele ou a deixando flácida", parecem passear sob a pele conforme flexionados, sugerindo aos antigos a imagem de ratinhos dentro do corpo.
Quanto a "humilde", talvez seja mais fácil de adivinhar. Vem de "humus", solo, que também deu origem a "humano", "homem", ser feito de barro.
"Cretino", diz Whitaker Salles, é um termo surgido em certa aldeia dos Alpes, onde a insuficiência de alimentos ricos em iodo tinha como resultado "uma alta porcentagem de pessoas retardadas, mental e fisicamente, a que o povo se referia genérica e simplesmente como "aqueles pobres cristãos'" ("crétins" no dialeto local).
Mais do que "ler nas entrelinhas", é preciso "ler dentro das palavras" para perceber que "inteligência" é composto de "inter" e "legere", sendo que este último termo significa tanto "ler" quanto "recolher", "fazer escolha". Sem dúvida, pois "ler" é também "juntar letras".
À medida que eu ia folheando o livro, fui-me sentindo vítima de uma espécie de alucinação. Cada palavra que me viesse à mente deixava de significar o que sempre significou, e tudo parecia obstáculo, cifra, enigma. Também sinto isso agora, ao ler o que acabo de escrever: "medida", "folhear", "livro", "sentir", "vítima". Como saber se, atrás dessas palavras, uma outra frase não está sendo escrita? Algo que dissesse respeito, por exemplo, a capim, barreiras, estrelas, sacrifício?
"Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores", observou Nietzsche; "e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem".
Cada palavra de uso comum seria uma metáfora fossilizada, portanto. O que sugere que, mesmo nas descrições mais exatas, nos esforços mais extremos de chegar à precisão e à verdade dos fatos, estaríamos utilizando as ferramentas da poesia e da ficção. Nietzsche assume, em seu texto "Sobre a Verdade e a Mentira num Sentido Extra-Moral", de 1873, o tom do pregador, do profeta.
"O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas."
Apesar do tom candente do filósofo, não vejo muito o que possa haver de perturbador nessas conclusões; não é tanto da "verdade" que se trata, mas sim da linguagem. Não me parece má notícia, nem testemunho de nossa incapacidade cognitiva, dizer que determinada palavra corriqueira foi, um dia, linguagem figurada. Talvez isso só torne a poesia mais verdadeira, e não a verdade mais imaginária.
Vai nesse sentido a epígrafe do livro de Whitaker, tirada de uma carta do poeta Rimbaud. Aliás, se não estou enganado, a carta foi escrita no mesmo ano do texto de Nietzsche. Diz Rimbaud que "toda palavra sendo idéia, o tempo de uma linguagem universal chegará! (...) Essa língua falará da alma para a alma, tudo abrangendo, perfumes, sons, cores".
Aqui, é como se cada sensação pudesse ser traduzida em outra, do mesmo modo que uma palavra pode ser vertida para outro idioma; e, sem dúvida, quando fazemos uma metáfora qualquer -os olhos da amada são como estrelas- estamos confiando em algum tipo de comunicação universal. Entre quem fala e quem ouve, por certo, mas também entre estrela e namorada.
O prazer que há nesses livros de etimologia talvez seja exatamente o de imaginar que, dentro de uma palavra genérica, duas ou mais coisas concretas ainda vivem e significam; a matéria do mundo, e não nós mesmos, é quem fala por meio de nossa voz.
Foi essa a minha sensação ao ler "Dentro do Dentro", que escolhe de modo muito feliz as palavras que irá explicar. É tanto mais interessante quanto mais "inocente", usual, o vocábulo estudado.
O fato é que livros de "etimologia popular" andam bastante em moda. Deonísio da Silva, pioneiro do gênero na revista "Caras", já publicou mais de um sucesso pelas editoras Mandarim e Arx. De minha parte, prefaciei o livro do jornalista Luiz Costa Pereira, "Com a Língua de Fora", sobre a origem "chula" de palavras "nobres" e vice-versa. O também jornalista Márcio Bueno, na editora José Olympio, lançou "A Origem Curiosa das Palavras", com verbetes interessantes e bem populares: "merreca", "mamulengo", "mandinga"...
Curiosidade pura e simples talvez seja o principal motivo dessas pesquisas; nesse tipo de livros sobrevive um gosto pela pura informação interessante, pelo "fait divers", pelo "você sabia?". Natural que jornalistas gostem desse tipo de coisa. É que atualmente os jornais diários correm o risco de se tornar técnicos demais, perdendo o seu apelo mais descompromissado, generalista e fragmentário. Tente acompanhar a reforma da Previdência. Perto disso, latim e grego são coisa de principiante.


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