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MARCELO COELHO
Por trás e por dentro das palavras
Conspiração: mistura de
hálitos. Músculo: um camundongo sob a pele. Humilde:
próximo da terra. Cretino: cristão. Inteligência: ler nas entrelinhas. Cretino: cristão.
Poderia ser uma série de poemas curtos. Mas as definições acima foram extraídas de um fascinante livro de M. F. Whitaker Salles sobre a origem das palavras,
"Dentro do Dentro" (editora
Mercuryo). O autor explica, em
não mais de uma página, a etimologia de cem palavras, de "afinidade" a "zênite". Para ficar nos
exemplos que citei, "conspiração"
é uma palavra formada a partir
do latim "cum" (junto) e "spirare", soprar. De "spirare" vem espírito, fôlego, sopro, ânimo de vida... que também aparece em
"suspirar", "expirar" e "inspirar".
"Músculo", por sua vez, é diminutivo de "mus", rato. Diz o autor
que os músculos, "contraindo-se,
relaxando-se, esticando a pele ou
a deixando flácida", parecem
passear sob a pele conforme flexionados, sugerindo aos antigos a
imagem de ratinhos dentro do
corpo.
Quanto a "humilde", talvez seja
mais fácil de adivinhar. Vem de
"humus", solo, que também deu
origem a "humano", "homem",
ser feito de barro.
"Cretino", diz Whitaker Salles,
é um termo surgido em certa aldeia dos Alpes, onde a insuficiência de alimentos ricos em iodo tinha como resultado "uma alta
porcentagem de pessoas retardadas, mental e fisicamente, a que o
povo se referia genérica e simplesmente como "aqueles pobres cristãos'" ("crétins" no dialeto local).
Mais do que "ler nas entrelinhas", é preciso "ler dentro das
palavras" para perceber que "inteligência" é composto de "inter"
e "legere", sendo que este último
termo significa tanto "ler" quanto
"recolher", "fazer escolha". Sem
dúvida, pois "ler" é também "juntar letras".
À medida que eu ia folheando o
livro, fui-me sentindo vítima de
uma espécie de alucinação. Cada
palavra que me viesse à mente
deixava de significar o que sempre significou, e tudo parecia obstáculo, cifra, enigma. Também
sinto isso agora, ao ler o que acabo de escrever: "medida", "folhear", "livro", "sentir", "vítima".
Como saber se, atrás dessas palavras, uma outra frase não está
sendo escrita? Algo que dissesse
respeito, por exemplo, a capim,
barreiras, estrelas, sacrifício?
"Acreditamos saber algo das
coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores", observou Nietzsche; "e no entanto não
possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem".
Cada palavra de uso comum seria uma metáfora fossilizada,
portanto. O que sugere que, mesmo nas descrições mais exatas,
nos esforços mais extremos de
chegar à precisão e à verdade dos
fatos, estaríamos utilizando as
ferramentas da poesia e da ficção.
Nietzsche assume, em seu texto
"Sobre a Verdade e a Mentira
num Sentido Extra-Moral", de
1873, o tom do pregador, do profeta.
"O que é a verdade, portanto?
Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que,
após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das
quais se esqueceu o que são, metáforas que se tornaram gastas e
sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas."
Apesar do tom candente do filósofo, não vejo muito o que possa
haver de perturbador nessas conclusões; não é tanto da "verdade"
que se trata, mas sim da linguagem. Não me parece má notícia,
nem testemunho de nossa incapacidade cognitiva, dizer que determinada palavra corriqueira
foi, um dia, linguagem figurada.
Talvez isso só torne a poesia mais
verdadeira, e não a verdade mais
imaginária.
Vai nesse sentido a epígrafe do
livro de Whitaker, tirada de uma
carta do poeta Rimbaud. Aliás, se
não estou enganado, a carta foi
escrita no mesmo ano do texto de
Nietzsche. Diz Rimbaud que "toda palavra sendo idéia, o tempo
de uma linguagem universal chegará! (...) Essa língua falará da alma para a alma, tudo abrangendo, perfumes, sons, cores".
Aqui, é como se cada sensação
pudesse ser traduzida em outra,
do mesmo modo que uma palavra pode ser vertida para outro
idioma; e, sem dúvida, quando
fazemos uma metáfora qualquer
-os olhos da amada são como
estrelas- estamos confiando em
algum tipo de comunicação universal. Entre quem fala e quem
ouve, por certo, mas também entre estrela e namorada.
O prazer que há nesses livros de
etimologia talvez seja exatamente o de imaginar que, dentro de
uma palavra genérica, duas ou
mais coisas concretas ainda vivem e significam; a matéria do
mundo, e não nós mesmos, é
quem fala por meio de nossa voz.
Foi essa a minha sensação ao
ler "Dentro do Dentro", que escolhe de modo muito feliz as palavras que irá explicar. É tanto
mais interessante quanto mais
"inocente", usual, o vocábulo estudado.
O fato é que livros de "etimologia popular" andam bastante em
moda. Deonísio da Silva, pioneiro
do gênero na revista "Caras", já
publicou mais de um sucesso pelas editoras Mandarim e Arx. De
minha parte, prefaciei o livro do
jornalista Luiz Costa Pereira,
"Com a Língua de Fora", sobre a
origem "chula" de palavras "nobres" e vice-versa. O também jornalista Márcio Bueno, na editora
José Olympio, lançou "A Origem
Curiosa das Palavras", com verbetes interessantes e bem populares: "merreca", "mamulengo",
"mandinga"...
Curiosidade pura e simples talvez seja o principal motivo dessas
pesquisas; nesse tipo de livros sobrevive um gosto pela pura informação interessante, pelo "fait divers", pelo "você sabia?". Natural
que jornalistas gostem desse tipo
de coisa. É que atualmente os jornais diários correm o risco de se
tornar técnicos demais, perdendo
o seu apelo mais descompromissado, generalista e fragmentário.
Tente acompanhar a reforma da
Previdência. Perto disso, latim e
grego são coisa de principiante.
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