São Paulo, domingo, 13 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BIA ABRAMO

"Páginas" fecha cerco moralizante


Manoel Carlos, detrás de sua mise-en-scène suave, faz uma novela superconservadora

NANDA APANHOU da mãe. Sandra, do ex-amante e patrão. Nanda foi abandonada pelo namorado quando se recusou a fazer um aborto. Nanda foi atropelada e morreu, numa longa agonia que durou quase uma semana. Sandra vive às turras com a mãe, que também parte para cima dela vez por outra.
Anna tortura a filha, obrigando-a fazer balé e a emagrecer sempre. Anna humilha o marido na frente da filha. Marta também. Marta bateu na filha, Nanda, mesmo com o barrigão de sete meses de gravidez. Marta vai rejeitar a neta, Clara, porque tem síndrome de Down. Isabel, a fotógrafa solteira boa-praça, vai se envolver com um perfeito cafajeste.
Helena é uma santa. Irmã Natércia, idem. Irmã Lavínia, ibidem. Lalinha também era tão boa que morreu numa capela, sem nem mesmo emitir um gemido ou pender a cabeça.
Jovens sexualizadas apanham, merecem uma, duas, mil surras. Mulheres mais velhas tornam-se amargas e neuróticas: a maternidade é uma cruz, a ser carregada à base de muito sofrimento. As solteiras e independentes caem nas mãos dos cretinos. As casadas vivem de crise em crise ou imersas no tédio. Só as muito boas são felizes.
É isso, em resumo, o que acontece com as personagens femininas de "Páginas da Vida". Manoel Carlos, detrás de sua mise-en-scène suave, está fazendo uma das novelas mais conservadoras dos últimos tempos.
Fala-se de sexo. Muito. Com detalhes vívidos. E tanto quem recebe para isso quanto quem dá de graça detalhes da intimidade nos depoimentos que encerram os capítulos.
Os populares desavisados (quem nunca apareceu na TV está sempre desavisado, não tem dimensão do que é se mostrar para milhões de pessoas) ao mesmo tempo em que avalizam as cabriolas liberalizantes da ficção conferem um ar de veracidade para o cerco moralizante.
Porque falatório sobre sexo e a exibição de calcinhas, peitos e bundas formam uma cortina de fumaça através da qual se entrevê o de sempre: machismo, um tanto de misoginia, corpos femininos brutalizados. Bossa nova é isso. Desde que as mulheres fiquem em seu lugar, está tudo bem. Se saem da linha, alguma mão pesada se encarrega de fazê-las voltar. Para o bem de todos, felicidade geral da nação e a paz do Leblon.

 

Uma perguntinha bem incômoda: se a mulher que confessou ter tido um orgasmo se masturbando fosse loura, linda, rica e jovem, a indignação teria sido do mesmo tamanho?

@ - biabramo.tv@uol.com.br


Texto Anterior: Terceiro livro aborda a culinária francesa
Próximo Texto: Ferreira Gullar: Saia justa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.