São Paulo, quinta-feira, 13 de agosto de 2009

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NINA HORTA

Das especiarias à "Gourmet"


Quando as pessoas não têm mais medo de morrer de fome, escolhem a comida por motivos inacreditáveis


NÃO PENSEM que só falo bem de livros, pelo contrário, sou para lá de implicante. No caso, há duas semanas estou falando só dos livros que gostei.
"O Sabor da Conquista - Veneza, Lisboa e Amsterdã na Rota das Especiarias", de Michael Krondl, da editora Rocco. O autor começa derrubando a hipótese de que a Idade Média comia especiarias demais e que o motivo era esconder o ranço da comidas. Pelas receitas que pesquisou, usavam uma colher de chá de especiarias por quilo de carne.
E o autor, comendo num restaurante de comida balti, assegura que a Idade Média acharia picante o que lhe deram lá. Acha que a procura das especiarias também não era para alimentos em decomposição. Será que os europeus ricos polvilhavam canela e pimenta no cisne e no pavão porque a carne estava rançosa?
É uma ideia absurda, pois durante a história humana, até o surgimento da refrigeração, os métodos usados sempre foram secagem, salga e conservação em ácido. Quando no fim do século 17 os franceses lançadores de moda inventaram uma comida francesa, por que deixaram de lado esse modo de conservação? E por que os europeus usariam produtos mais caros e importados, se tinham os mais baratos e mais eficazes?
Os cientistas tentaram descobrir uma mercadoria moderna que tivesse o mesmo papel transformador desempenhado pelas especiarias na expansão da Europa. Pensaram no petróleo. Claro que as nações até entram em guerra pela importância de algo tão crítico. Mas especiarias, pimenta? São absolutamente dispensáveis. E é aí que podemos ver o relacionamento do homem com os alimentos. Quando as pessoas não têm mais medo de morrer de fome, escolhem a comida por motivos inacreditáveis. O alimento é fonte de significado e simbolismo.
O autor chega aos nossos tempos, passando por Veneza, Lisboa e Amsterdã e acaba em Baltimore, visitando a McCormick & Company, a maior multinacional no ramo de especiarias. Consegue, com dificuldade, ingressar nos segredos da empresa e fica de queixo caído. Vê que as pessoas não querem mais saber de cozinhar. Montam pratos. A decisão das tendências do mundo globalizado sai dos potes com temperos de pimenta, de caça, de defumado, de grelhado. A firma gosta de ser vista como uma companhia de sabores, e não de especiarias.
Elas estavam na moda em 1500, como elixir da vida ou um gosto do paraíso. E agora, pelos mesmos motivos, longevidade, curas, saúde perene, enfim, vamos sendo dirigidos pelos mesmos venezianos, portugueses e holandeses de outrora, com outro nome.
Para mudar completamente de assunto, bem, nem tanto, um livro maravilhoso que ajudei a traduzir.
"Banquetes Intermináveis", da DBA. A seleção foi feita por Ruth Reichl, com muito critério. As pessoas que gostam do assunto "comida", encaixado no tempo e no espaço, vão adorar. Tem lei seca, coquetéis dos anos 30, boas pescarias e nostalgias de uma época dourada.
Pelo menos para ver Zelda Fitzgerald tirando a roupa nos coquetéis para chamar atenção, as dificuldades para se conseguir beber, o homem que caça, o que pesca, o surgimento e decadência dos grandes hotéis de luxo, os perfis dos maiores gourmets americanos, enfim, são os melhores artigos da revista "Gourmet" americana nos últimos 60 anos. Não é um livro de receitas, é um livro de comidas feitas sob o céu onde nasceram, rodeadas das pessoas que as plantaram, escrito com o coração, muita veracidade e graça.
Bom mesmo, muito bom.

ninahorta@uol.com.br


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