UOL


São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

O grande mistério das barbas!

Não fazem mais aqueles filmes com o Zé Trindade, acredito que um dos motivos é ter ele morrido e não ter aparecido um equivalente com a mesma voz, o mesmo tamanho e a mesma cara fescenina que lhe deu fama. Filmes deliciosos, em que ele praticamente fazia sempre o mesmo papel; não importava o enredo, a locação, o elenco, ele vivia as situações rotineiras de todos os cômicos do cinema nacional, metido com ladrões e mulheres bonitas, em ambientes suburbanamente luxuosos; não importava que fosse Oscarito, Grande Otelo, Costinha, Colé, Mesquitinha, Ankito ou Walter Dávila, tudo era mais ou menos a mesma coisa.
No caso de Zé Trindade, o que valia eram os pequenos cacos que ele introduzia, com aquela voz que, mesmo dando um bom-dia, mesmo rezando a Ave Maria, tinha uma sacanagem embutida, um duplo sentido na maioria das vezes obsceno.
Lembro um filme do qual esqueci nome, elenco, diretor e proveito. Na inevitável correria final, perseguido por bandidos internacionais que o julgavam milionário e mulheres nacionais, às quais prometera casamento, ele entra num casarão em busca de refúgio e vai abrindo portas sucessivas, mas em todas encontra um bandido ou uma mulher esperando por ele para ajustar as respectivas contas, o dinheiro que não tem para os bandidos e, para as mulheres, o casamento que não pode dar porque já é casado com a Dercy Gonçalves.
Numa das portas que abre, estranhamente, não há nem bandido internacional nem mulher nacional esperando por ele. Há uma multidão de calças penduradas do teto para secar. Não sei de quem era a história (para falar a verdade, o filme não chega a ter uma história) nem lembro a equipe técnica, mas li num jornal da época que a cena escapara à produção, um vacilo qualquer do diretor fez Zé Trindade abrir uma porta errada que não estava incluída no roteiro.
Distraído, o câmera fez a tomada daquelas calças todas. Que o diretor mais tarde cortasse aquela cena na moviola. Mas Zé Trindade abre a porta, nota o engano da equipe, e, quando entra em close, como nas cenas anteriores, tem de dizer alguma coisa. E, como não havia nada para dizer, ele exclama com aquela voz característica, que outra não houve igual: "O grande mistério das calças!".
O diretor não era tão burro assim; quando viu aquela cena no negativo do filme, a manteve rigorosamente fiel, embora não fizesse nenhum sentido, nem dentro nem fora da história que estava contando. Que, aliás, não tinha tanto sentido assim.
Nunca esqueci aquele caco genial e toda vez que me deparo com alguma coisa incompreensível, que escapa ao meu raciocínio e à minha expectativa, repito como Zé Trindade, lembrando a sua voz inimitável: "O grande mistério das calças!".
Nem sempre são calças que me espantam. Na realidade, elas nunca me espantaram, são substituídas por outras coisas e objetos que não fazem sentido na história da minha vida.
O exemplo mais recente são as barbas. De repente, jornais, revistas e TV exibem barbas de vários tamanhos, feitios e intenções, o que já me obrigou a escrever uma crônica na página 2 da Folha com o título "Venerabilis barba", citando as barbas do Enéas, do Ciro Gomes, do Roberto Feith e, por extensão, dos muitos barbados que subiram ao pódio e estão em todas, dando palpites, prometendo isso ou aquilo e, na maioria das vezes, pedindo paciência ao povo, garantindo que ninguém perde por esperar. Não em tom de ameaça, mas de esperança. Tudo será resolvido.
Seria o caso de aparecer um Zé Trindade para dizer com aquela voz sacana: "O grande mistério das barbas!". Deus é testemunha de que nada tenho contra as barbas, o próprio Cristo usava uma e Fidel Castro ainda a usa. Por falar em Fidel, há aquela piada a favor do imperialismo globalizado que nos maltrata. Num comício, o comandante pergunta à multidão: "Fidel não tem barba como Jesus Cristo?". A plebe responde entusiasmada: "La tiene!". E o comandante prossegue: "Fidel não tem os olhos mansos de Jesus Cristo?". A multidão ruge: "Los tiene!".
O herói de Sierra Maestra se inflama: "Fidel não tem o discurso de justiça e paz de Nosso Senhor Jesus Cristo?". O povo vai ao delírio: "Lo tiene!". Mas há um bêbado na multidão e no embalo do entusiasmo geral, pergunta: "Entonces, por que no crucificarlo?"".
Gosto muito desse "entonces". Qualquer piada em espanhol fica saborosa quando entra um "entonces". E então me pergunto: onde quis chegar com este texto que começa com o finado Zé Trindade, passa pelo Enéas e termina no Fidel Castro?
Já que estou com a mão na massa, citando em espanhol, não custa prosseguir. Sou pobre na língua de Cervantes e de Carlos Gardel, conheço pouquíssimas palavras em espanhol, teléfono, micrófono, democrácia, nosotros, entonces, sin embargo.
É isso aí. "Sin embargo", não estou bom de assunto e fico por aqui, exclamando como o Zé Trindade diante de tantas calças: "O grande mistério das barbas que cuidam de nosotros!".


Texto Anterior: Novela: A dramática "Esperança" chega ao fim
Próximo Texto: Dogma pop
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.