|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O grande mistério das barbas!
Não fazem mais aqueles
filmes com o Zé Trindade,
acredito que um dos motivos é ter
ele morrido e não ter aparecido
um equivalente com a mesma
voz, o mesmo tamanho e a mesma cara fescenina que lhe deu fama. Filmes deliciosos, em que ele
praticamente fazia sempre o mesmo papel; não importava o enredo, a locação, o elenco, ele vivia as
situações rotineiras de todos os
cômicos do cinema nacional, metido com ladrões e mulheres bonitas, em ambientes suburbanamente luxuosos; não importava
que fosse Oscarito, Grande Otelo,
Costinha, Colé, Mesquitinha, Ankito ou Walter Dávila, tudo era
mais ou menos a mesma coisa.
No caso de Zé Trindade, o que
valia eram os pequenos cacos que
ele introduzia, com aquela voz
que, mesmo dando um bom-dia,
mesmo rezando a Ave Maria, tinha uma sacanagem embutida,
um duplo sentido na maioria das
vezes obsceno.
Lembro um filme do qual esqueci nome, elenco, diretor e proveito. Na inevitável correria final,
perseguido por bandidos internacionais que o julgavam milionário e mulheres nacionais, às quais
prometera casamento, ele entra
num casarão em busca de refúgio
e vai abrindo portas sucessivas,
mas em todas encontra um bandido ou uma mulher esperando
por ele para ajustar as respectivas
contas, o dinheiro que não tem
para os bandidos e, para as mulheres, o casamento que não pode
dar porque já é casado com a
Dercy Gonçalves.
Numa das portas que abre, estranhamente, não há nem bandido internacional nem mulher nacional esperando por ele. Há uma
multidão de calças penduradas
do teto para secar. Não sei de
quem era a história (para falar a
verdade, o filme não chega a ter
uma história) nem lembro a equipe técnica, mas li num jornal da
época que a cena escapara à produção, um vacilo qualquer do diretor fez Zé Trindade abrir uma
porta errada que não estava incluída no roteiro.
Distraído, o câmera fez a tomada daquelas calças todas. Que o
diretor mais tarde cortasse aquela cena na moviola. Mas Zé Trindade abre a porta, nota o engano
da equipe, e, quando entra em
close, como nas cenas anteriores,
tem de dizer alguma coisa. E, como não havia nada para dizer,
ele exclama com aquela voz característica, que outra não houve
igual: "O grande mistério das calças!".
O diretor não era tão burro assim; quando viu aquela cena no
negativo do filme, a manteve rigorosamente fiel, embora não fizesse nenhum sentido, nem dentro nem fora da história que estava contando. Que, aliás, não tinha tanto sentido assim.
Nunca esqueci aquele caco genial e toda vez que me deparo
com alguma coisa incompreensível, que escapa ao meu raciocínio
e à minha expectativa, repito como Zé Trindade, lembrando a
sua voz inimitável: "O grande
mistério das calças!".
Nem sempre são calças que me
espantam. Na realidade, elas
nunca me espantaram, são substituídas por outras coisas e objetos que não fazem sentido na história da minha vida.
O exemplo mais recente são as
barbas. De repente, jornais, revistas e TV exibem barbas de vários
tamanhos, feitios e intenções, o
que já me obrigou a escrever uma
crônica na página 2 da Folha
com o título "Venerabilis barba",
citando as barbas do Enéas, do
Ciro Gomes, do Roberto Feith e,
por extensão, dos muitos barbados que subiram ao pódio e estão
em todas, dando palpites, prometendo isso ou aquilo e, na maioria
das vezes, pedindo paciência ao
povo, garantindo que ninguém
perde por esperar. Não em tom de
ameaça, mas de esperança. Tudo
será resolvido.
Seria o caso de aparecer um Zé
Trindade para dizer com aquela
voz sacana: "O grande mistério
das barbas!". Deus é testemunha
de que nada tenho contra as barbas, o próprio Cristo usava uma e
Fidel Castro ainda a usa. Por falar em Fidel, há aquela piada a
favor do imperialismo globalizado que nos maltrata. Num comício, o comandante pergunta à
multidão: "Fidel não tem barba
como Jesus Cristo?". A plebe responde entusiasmada: "La tiene!".
E o comandante prossegue: "Fidel
não tem os olhos mansos de Jesus
Cristo?". A multidão ruge: "Los
tiene!".
O herói de Sierra Maestra se inflama: "Fidel não tem o discurso
de justiça e paz de Nosso Senhor
Jesus Cristo?". O povo vai ao delírio: "Lo tiene!". Mas há um bêbado na multidão e no embalo do
entusiasmo geral, pergunta: "Entonces, por que no crucificarlo?"".
Gosto muito desse "entonces".
Qualquer piada em espanhol fica
saborosa quando entra um "entonces". E então me pergunto: onde quis chegar com este texto que
começa com o finado Zé Trindade, passa pelo Enéas e termina no
Fidel Castro?
Já que estou com a mão na massa, citando em espanhol, não custa prosseguir. Sou pobre na língua de Cervantes e de Carlos Gardel, conheço pouquíssimas palavras em espanhol, teléfono, micrófono, democrácia, nosotros,
entonces, sin embargo.
É isso aí. "Sin embargo", não estou bom de assunto e fico por
aqui, exclamando como o Zé
Trindade diante de tantas calças:
"O grande mistério das barbas
que cuidam de nosotros!".
Texto Anterior: Novela: A dramática "Esperança" chega ao fim Próximo Texto: Dogma pop Índice
|