São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2009

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Contra o regionalismo

Milton Hatoum, que publica livro de contos, contesta o conceito de literatura regionalista, para ele um clichê datado

Julio Bittencourt/Folha Imagem
O escritor amazonense Milton Hatoum, 56, concedeu entrevista e posou para fotos na última quarta, em sua casa, em São Paulo; ele lança ‘A Cidade Ilhada’

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Para onde vou, Manaus me persegue", diz o protagonista de um dos contos de "A Cidade Ilhada", livro de Milton Hatoum, 56, que chega na semana que vem às prateleiras.
Como os narradores das outras histórias que compõem a obra, este está carregado de referências literárias e da personalidade do autor amazonense.
Porém, ainda que a maior parte dos textos se refira à Manaus na qual o escritor cresceu e à Manaus modernizada que hoje visita com frequência, Hatoum rejeita o rótulo de regionalista. E mais, considera necessário rever certos clichês construídos a partir desse conceito. "Graciliano Ramos não foi regionalista, mas um escritor brasileiro e universal, assim como Machado de Assis", disse, em entrevista à Folha realizada na última quarta-feira, em sua casa, em São Paulo.
Para ele, a noção de regionalismo virou algo datado e deve ser contestada, porque pressupõe que exista em oposição a um romance central. "Kafka era da periferia, Flaubert, da província, García Márquez, também do interior. O que interessa é o que o escritor faz a partir de um centro simbólico, de um chão histórico."
"A Cidade Ilhada" do título é a capital amazonense, que se transforma numa espécie de Macondo (cidade imaginária em que se passa "Cem Anos de Solidão") para Hatoum.
"Manaus carrega uma ambiguidade. É um lugar ilhado pela natureza, mas também um ponto de passagem. Dali partem narradores locais e para lá vão os narradores estrangeiros. Toda cidade portuária tem um lado sórdido, a pobreza, o crescimento desordenado, mas também concentra um encanto, do mistério e da expectativa do que virá no próximo navio."
Estrangeiros são personagens importantes no livro. Há um japonês que viaja com o único objetivo de ver o rio Negro e depois ter suas cinzas jogadas ali. Um almirante indiano que quer conhecer um autor nativo. Um cientista suíço que perde a mulher para um dançarino local e volta, corroído de ciúmes, para a Europa.
Hatoum fala de sua infância marcada por essas figuras de fora, desde comerciantes à procura da loja de seu pai a turistas vindos nos transatlânticos. Além deles, pesquisadores de diversas áreas. Recentemente, registra a presença de músicos da Europa do Leste que vêm para a orquestra local e orientais atraídos pela movimentação da Zona Franca.
"É um lugar que exerce fascínio em diferentes tipos de viajantes. De estudiosos a malucos aventureiros. E é também por causa de suas impressões que rejeito a ideia de regionalismo, pois ajudam a construir a memória local. Não apenas os amazonenses têm legitimidade para falar do Amazonas."

Euclydes e Sartre
Ao ambiente que mescla nostalgia da adolescência com o pessimismo ao notar a degradação da cidade em crescimento desordenado, Hatoum incorporou célebres personagens reais. Euclydes da Cunha aparece num conto em que o narrador encontra, numa biblioteca da Califórnia, uma carta fictícia que o autor de "Os Sertões" teria escrito durante uma verdadeira estada em Manaus, após o episódio de Canudos.
Em outra história, um velho poeta local lembra a passagem de Jean-Paul Sartre por ali, enquanto conversa com um jovem estudante que está de partida para Paris, carregando a ilusão de tornar-se escritor.


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