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Assisto a séries, logo existo
Filósofo vai de Aristóteles a Descartes para analisar personagens como
o doutor House e Jack Bauer, símbolos dos valores contemporâneos
ANA PAULA SOUSA
DA REPORTAGEM LOCAL
Professor de filosofia do que
seria, na França, o ensino médio, Thibaut de Saint Maurice
percebeu, numa tarde cinzenta
de inverno, que as explicações
sobre o "raciocínio experimental" eram incapazes de alterar,
minimamente que fosse, o
olhar de seus alunos. Estavam
todos alheios ao que dizia. Foi
então que, tal e qual reviravolta
num roteiro, ele lembrou-se do
doutor House, o médico que dá
nome a uma das séries mais vistas no mundo.
"Ao escrever no quadro-negro, para ninguém, lembrei do
House tentando explicar aos
colegas, no hospital, a pertinência de suas hipóteses", diz.
"Perguntei aos alunos se conheciam o House. Até os que
olhavam pela janela se voltaram para mim. Começamos a
falar sobre a descoberta dos
diagnósticos pelo personagem
e, então, toda aquela história de
"diálogo entre razão e experimento" ganhou sentido."
Nascia assim "Philosophie en
Séries" ("Filosofia em Séries"),
publicado na França, sem tradução no Brasil. Se são muitos
os subprodutos que as séries
procriam, poucos são os que se
mostram tão inventivos e, digamos, filosóficos.
"A riqueza das séries é inexplorada", diz o autor, em entrevista à Folha. "Todas juntas,
são um formidável espelho da
vida contemporânea e constituem um grande reservatório
de experiências e de situações
com as quais muita gente se
identifica." Por isso, sentado
em frente à TV, Maurice resolveu filosofar e, de posse de um
livro de Kant, acabou por pensar em Jack Bauer, "antikantiano" por excelência.
O autor está convicto de que
séries como "Nip/Tuck", "A Sete Palmos" e "Dexter", diversão
à parte, giram em torno de
questionamentos sobre os valores sociais e a maneira de se
ver o mundo. A obsessão estética, a morte e o senso de justiça
numa sociedade que se sente
refém da violência são, na visão
de Maurice, o estofo desses
programas.
Jack Bauer, por sua vez, seria
o típico herói pós-moderno.
"Seu heroísmo não repousa sobre uma virtude essencial, uma
fé religiosa ou sobre valores
universais. Seu heroísmo é o da
eficácia. Sua moral é a utilitarista. A violência que ele pratica é vista como um preço a ser
pago em nome da eficácia."
Já House encarnaria a figura
moderna de um Sócrates obcecado pela busca pela verdade.
"O sucesso da figura de House é
extremamente revelador de
uma sociedade que não se importa mais com a verdade", diz,
dialético.
Conciliação cultural
O que empurrou Maurice para o projeto foi o desejo de reconciliar cultura de massa e
cultura acadêmica. Ele, que
tem 30 anos e cresceu assistindo a "Buffy", "Arquivo-X" e
"Oz", está convicto de que, por
meio da cultura de massa, também é possível valorizar o que
os grandes pensadores um dia
disseram. "Quando se fala em
cultura geral, se pensa na cultura clássica: a cultura do passado
é transmitida pela escola enquanto a cultura de massa é tratada como mero entretenimento. Mas isso, simplesmente, não
corresponde à maneira como
as pessoas vivenciam sua prática cultural. Ver TV não exclui a
leitura de livros."
Maurice defende, ao contrário, que pelo fato de estarem no
dia a dia de espectadores do
mundo todo, as séries podem,
se esmiuçadas, mostrar o quanto a filosofia clássica tem a dizer sobre a contemporaneidade. E por que as séries e não o
cinema? "Se eu tivesse sido
professor nos anos 50, certamente o cinema é que teria chamado a minha atenção, ou mesmo o rock'n'roll. Mas, hoje, o vigor criativo está nas séries."
Maurice confessa, na entrevista, que dentre os 11 programas que analisa, os prediletos
são "24 Horas" e "A Sete Palmos". O primeiro, porque tem
uma ação vigorosa e toca, de
maneira explícita, nas questões
da filosofia moral. O segundo,
pela capacidade de falar sobre o
lugar que a morte ocupa na vida
de cada um.
O filósofo irrita-se, porém,
com "CSI", que, a seu ver, coloca os procedimentos científicos
a serviço do fantasma da segurança e da resolução de crimes.
"Me parece um tratamento
complicado, pouco cuidadoso,
da ciência, um dos bens mais
preciosos da humanidade."
E, no seu caso, é possível falar
de séries sem desrespeitar a
complexidade de certas teorias? "Você faria a mesma pergunta se eu usasse a filosofia
para falar sobre pintura?", pergunta, num momento-House.
Ou seria Sócrates?
PHILOSOPHIE EN SÉRIES
Autor: Thibaut de Saint Maurice
Editora: Ellipses (176 págs.; importado)
Quanto: 11,88 (cerca de R$ 30 mais
taxas em www.amazon.fr)
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