São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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LIVRO
Alcione Araújo estréia com prosa audaciosa

FERNANDA GODOY
da Sucursal do Rio

"Nem Mesmo Todo o Oceano", romance de estréia do dramaturgo e roteirista Alcione Araújo, 50, é uma empreitada audaciosa: ele se propõe a narrar o que se passou nos porões do regime militar nos anos 70 a partir do ponto de vista do opressor. E a fazê-lo em quase 800 páginas de prosa envolvente.
O livro, que será lançado segunda-feira no Rio, tem como protagonista e narrador um médico de origem humilde que se casa com a filha de um general, vai trabalhar no Exército e acaba cooptado pelo aparelho de repressão.
O personagem, que, significativamente, é anônimo, se envolve progressivamente com a tortura. Reabilita presos para que sejam submetidos a novas sessões de tortura. Até descobrir que seu envolvimento é um caminho sem volta.
Para Araújo, esse é um lado da história que precisava ser contado. "Há um silêncio muito grande", diz o escritor, que chegou a ser preso por oposição ao regime militar, mas nega que o livro tenha caráter autobiográfico.
"O protagonista é mineiro, como eu, mas isso foi só porque eu tenho mais familiaridade com a região para descrevê-la", diz Araújo.
Acostumado às limitações de estilo e de espaço impostas a roteiros para cinema e TV, o escritor confessa ter se apaixonado pela liberdade permitida pelo romance.
A combinação dessa liberdade com uma dose de ousadia levou-o a inaugurar a carreira de romancista com um tijolo de 794 páginas. "Não consegui cortar", simplifica.
Quando lhe perguntaram se temia que a extensão do livro pudesse prejudicar suas vendas, não hesitou. "O sucesso é efêmero, a vida é precária. Não faz sentido correr atrás de sucesso."
Batizado carioca há 21 anos, Araújo recebeu a Folha em seu apartamento, na quadra da praia do Leblon (zona sul do Rio), arejado por uma fresta para o mar. A seguir, trechos da entrevista.

Folha - Por que o sr. escolheu contar essa história a partir do ponto de vista dos torturadores, de um lado que não era o seu?
Alcione Araújo -
Porque o lado de cá já tinha muitos depoimentos. Mas do lado de lá é um silêncio muito grande. Para entender o lado de lá, só pela ficção. Evidentemente, é uma ficção muito amparada na realidade, mas é ficção.
Folha - Esse livro estava na sua cabeça desde os anos 70, mas só começou a ser escrito em 95. Em que medida esse distanciamento mudou sua forma de ver as coisas?
Araújo
- É claro que esse afastamento facilita ser mais compreensivo. A compreensão leva a uma certa compaixão, mas não ao perdão. Ao mesmo tempo, você já teve mais informações sobre o que se passava naqueles porões. Esta semana mesmo eu li na Folha que o Fernando Henrique botou num determinado cargo um cidadão (o general Ricardo Fayad, nomeado subdiretor de Saúde do Exército) que tem uma trajetória muito parecida com a do meu personagem. Uma amiga me ligou para dizer que aquele cidadão foi quem a reanimou depois de ela ter sido torturada. Me surpreende que esses homens ainda sejam prestigiados. É evidente que houve anistia para os dois lados, mas isso não deu prestígio a ninguém.
Folha - O filme "O Que É Isso, Companheiro?" causou polêmica e foi criticado por apresentar uma versão considerada amena do torturador. O sr. teme que isso possa acontecer com o seu livro?
Araújo -
Não. Meu protagonista é um médico, não é um torturador, embora tenha uma participação no processo. O livro tem uma epígrafe de Nietzsche sobre o conflito entre o orgulho e a memória. Quando você está contando uma história onde há o seu orgulho e a memória dos fatos, vence sempre o orgulho, diz Nietzsche. E você está ouvindo o próprio personagem contar a sua história. Portanto, ele pode estar "ficcionando".
Folha - Qual é, a seu ver, a herança daquela época?
Araújo
- É uma herança muito amarga e muito dura. Foi uma época em que o Brasil tinha duas caras: a do milagre, da prosperidade, e a do sangue que se derramava nos porões. Essa ambiguidade deixou um legado de que você pode obter êxito atropelando as pessoas, o direito, a ética. O meu protagonista fez o percurso do êxito e esse percurso incluía atropelar os valores humanos. Isso é uma coisa que o Brasil vive hoje: uma crise muito séria de discernimento. As pessoas perderam os limites éticos.
Livro: Nem Mesmo Todo o Oceano Autor: Alcione Araújo Lançamento: Record Quanto: R$ 38, 794 págs.


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