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LIVRO
Alcione Araújo estréia com prosa audaciosa
FERNANDA GODOY
da Sucursal do Rio
"Nem Mesmo Todo o Oceano",
romance de estréia do dramaturgo
e roteirista Alcione Araújo, 50, é
uma empreitada audaciosa: ele se
propõe a narrar o que se passou
nos porões do regime militar nos
anos 70 a partir do ponto de vista
do opressor. E a fazê-lo em quase
800 páginas de prosa envolvente.
O livro, que será lançado segunda-feira no Rio, tem como protagonista e narrador um médico de
origem humilde que se casa com a
filha de um general, vai trabalhar
no Exército e acaba cooptado pelo
aparelho de repressão.
O personagem, que, significativamente, é anônimo, se envolve
progressivamente com a tortura.
Reabilita presos para que sejam
submetidos a novas sessões de tortura. Até descobrir que seu envolvimento é um caminho sem volta.
Para Araújo, esse é um lado da
história que precisava ser contado.
"Há um silêncio muito grande",
diz o escritor, que chegou a ser
preso por oposição ao regime militar, mas nega que o livro tenha caráter autobiográfico.
"O protagonista é mineiro, como
eu, mas isso foi só porque eu tenho
mais familiaridade com a região
para descrevê-la", diz Araújo.
Acostumado às limitações de estilo e de espaço impostas a roteiros
para cinema e TV, o escritor confessa ter se apaixonado pela liberdade permitida pelo romance.
A combinação dessa liberdade
com uma dose de ousadia levou-o
a inaugurar a carreira de romancista com um tijolo de 794 páginas.
"Não consegui cortar", simplifica.
Quando lhe perguntaram se temia que a extensão do livro pudesse prejudicar suas vendas, não hesitou. "O sucesso é efêmero, a vida
é precária. Não faz sentido correr
atrás de sucesso."
Batizado carioca há 21 anos,
Araújo recebeu a Folha em seu
apartamento, na quadra da praia
do Leblon (zona sul do Rio), arejado por uma fresta para o mar. A
seguir, trechos da entrevista.
Folha - Por que o sr. escolheu
contar essa história a partir do
ponto de vista dos torturadores,
de um lado que não era o seu?
Alcione Araújo - Porque o lado
de cá já tinha muitos depoimentos.
Mas do lado de lá é um silêncio
muito grande. Para entender o lado de lá, só pela ficção. Evidentemente, é uma ficção muito amparada na realidade, mas é ficção.
Folha - Esse livro estava na sua
cabeça desde os anos 70, mas só
começou a ser escrito em 95. Em
que medida esse distanciamento
mudou sua forma de ver as coisas?
Araújo - É claro que esse afastamento facilita ser mais compreensivo. A compreensão leva a uma
certa compaixão, mas não ao perdão. Ao mesmo tempo, você já teve mais informações sobre o que se
passava naqueles porões. Esta semana mesmo eu li na Folha que o
Fernando Henrique botou num
determinado cargo um cidadão (o
general Ricardo Fayad, nomeado
subdiretor de Saúde do Exército)
que tem uma trajetória muito parecida com a do meu personagem.
Uma amiga me ligou para dizer
que aquele cidadão foi quem a reanimou depois de ela ter sido torturada. Me surpreende que esses homens ainda sejam prestigiados. É
evidente que houve anistia para os
dois lados, mas isso não deu prestígio a ninguém.
Folha - O filme "O Que É Isso,
Companheiro?" causou polêmica e
foi criticado por apresentar uma
versão considerada amena do torturador. O sr. teme que isso possa
acontecer com o seu livro?
Araújo - Não. Meu protagonista é um médico, não é um torturador, embora tenha uma participação no processo. O livro tem uma
epígrafe de Nietzsche sobre o conflito entre o orgulho e a memória.
Quando você está contando uma
história onde há o seu orgulho e a
memória dos fatos, vence sempre
o orgulho, diz Nietzsche. E você
está ouvindo o próprio personagem contar a sua história. Portanto, ele pode estar "ficcionando".
Folha - Qual é, a seu ver, a herança daquela época?
Araújo - É uma herança muito
amarga e muito dura. Foi uma
época em que o Brasil tinha duas
caras: a do milagre, da prosperidade, e a do sangue que se derramava
nos porões. Essa ambiguidade deixou um legado de que você pode
obter êxito atropelando as pessoas, o direito, a ética. O meu protagonista fez o percurso do êxito e
esse percurso incluía atropelar os
valores humanos. Isso é uma coisa
que o Brasil vive hoje: uma crise
muito séria de discernimento. As
pessoas perderam os limites éticos.
Livro: Nem Mesmo Todo o Oceano
Autor: Alcione Araújo
Lançamento: Record
Quanto: R$ 38, 794 págs.
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