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São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2003

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MARCELO COELHO

A gravidade das imagens

Os diálogos são fracos, os atores, mais ainda. Há uma cena de sexo que é pura breguice no estilo da década de 70. O desfecho do filme com uma bandeira de Israel tremulando discretamente ao fundo está no limite do propagandístico. Mas "Kippur - O Dia do Perdão", em cartaz no Cineclube DirectTV, merece ser visto mesmo assim.
Imagino que não seja fácil fazer um filme totalmente pacifista em Israel hoje em dia. O diretor, Amos Gitai, que já havia traçado um retrato terrível das comunidades ultra-ortodoxas em seu país, provavelmente sabia que estava comprando novas brigas ao narrar, nesse filme autobiográfico, suas próprias experiências no Exército israelense em 1973.
Egito e Síria invadiam de surpresa o território de Israel. Não há em "Kippur" cenas de batalha clássicas embora as câmeras nunca se afastem muito do cenário de guerra.
Toda a ação do filme se concentra no trabalho de uma equipe médica de resgate. O que vemos, o tempo inteiro, são soldados feridos e mortos e o empenho, sem dúvida heróico, dos que descem de helicóptero em pleno campo de batalha para salvar vidas, e não para matar o inimigo.
Claro que isso poderia resultar, com um belo fundo musical e cenas em câmera lenta, num espetáculo da mais indecente pieguice hollywoodiana. O que há de interessante em "Kippur" é que suas cenas são filmadas de forma quase estática, como que numa espécie de paralisia moral. Cada sequência demora um pouco mais do que deveria; a câmera insiste, recusa-se em passar para outro assunto. Não quer que o espectador se esqueça do que está vendo. Não se trata de contar uma história da forma mais rápida, econômica e empolgante possível. A narrativa não existe, ou melhor, desaparece diante da gravidade imóvel, absoluta, do sofrimento específico de cada homem ferido ou morto.
Fundo musical, cortes rápidos, agilidade narrativa, câmera trepidante: tudo isso parece pura frivolidade diante do modo como Amos Gitai filmou a guerra. Se existe heroísmo nos personagens, não há nada de épico em tudo aquilo. Estão todos perdidos no meio da batalha, e, como o diretor elimina qualquer senso de narrativa, qualquer sentido na sucessão dos episódios, as atividades dos personagens assumem o caráter de uma rotina estafante, de um trabalho especialmente penoso e ingrato.
Há uma cena terrível, e demoradíssima, em que o médico e seus auxiliares tentam tirar um ferido de uma vala, em meio à chuva. Estão todos atolados na lama; a maca escorrega, não há como levar o ferido até o helicóptero... E, quando esse episódio finalmente termina e o helicóptero levanta vôo, uma tomada panorâmica revela ao espectador a dimensão completa da situação.
Lembro-me de ter gostado muito de "A Lista de Schindler" e de ter ficado muito surpreso quando ouvi pela primeira vez a opinião de que seria imoral, e até obsceno, encenar os horrores do nazismo daquela maneira. Nada mais indesculpável, dizem os críticos de Spielberg, do que obter efeitos catárticos a partir da representação do mal absoluto e tornar visível, segundo padrões do entretenimento de massas, a catástrofe inominável do genocídio. Há extensas e ricas discussões a respeito do tema, confira-se o volume "Catástrofe e Representação", da editora Escuta.
A polêmica reverbera ainda quando se condena este ou aquele filme por ter promovido uma "espetacularização da violência". Eis uma expressão que já se tornou quase um clichê crítico, sendo aplicada, com razão, a tudo quanto é filme americano de propaganda belicista.
Entre espetacularização e denúncia, entre obscenidade e representação, entre o que deriva da necessidade de apontar o sofrimento humano e o que é pura exploração sensacionalista desse sofrimento, há, contudo, diferenças consideráveis, e muitos filmes parecem, atualmente, empenhados justamente em encontrar soluções próprias para esse problema.
"O Pianista", de Polanski, poderia em tese atrair muitas das críticas feitas a Spielberg: nenhuma representação da violência nazista estaria à altura da enormidade do que ocorreu. Polanski parece ter conseguido, entretanto, responder de forma original a essa crítica. Em vários momentos do filme, é exatamente esse interdito, essa impossibilidade de representar o horror, que está sendo tematizada.
Wladislaw Szpilman, o protagonista do filme, assiste a toda a sua família ser jogada no trem que a levará ao campo de extermínio. A porta do vagão se cerra bruscamente. Szpilman nunca mais verá seus pais e seus irmãos. E, desse modo, o próprio filme parece afirmar que o que aconteceu no campo de extermínio não será mostrado ao espectador, está além de qualquer filmagem.
Há outras cenas de extrema violência (hesito em descrevê-las) que Polanski também evita espetacularizar. Assim, quando Szpilman presencia o assassinato de um velhinho em cadeira de rodas, tudo é filmado de longe, da janela do apartamento em frente, numa situação que, ao mesmo tempo, acentua a impotência do protagonista e a impossibilidade moral e estética de mostrar mais de perto o que acontece.
"Kippur" não está às voltas com a atrocidade nazista, mas também procura respostas para a questão de como representar o "irrepresentável". A lentidão das cenas, o sofrimento em que estão imersos os personagens, tudo o que há no filme de fatigante parece ser efeito de um olhar propositadamente fixo; fixo, mas não fascinado. E o constante som dos helicópteros, que atravessa o filme inteiro, quase acrescenta um novo véu, uma nova obscuridade, um interdito sonoro para tudo o que está sendo mostrado. Não se ouve nada do que os personagens dizem e é como se o diretor sugerisse com isso que nenhum comentário, nenhuma justificativa, nenhum discurso vem ao caso diante do que está a ocorrer.


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