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NELSON ASCHER
A nova desordem internacional
Em que urna alguém que discorde das decisões da ONU depositará seu voto de protesto?
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TUDO LEVA a crer que o Estado
nacional tornou-se um fóssil
anunciado. Por um lado, os
problemas e tendências atuais mais
candentes parecem transcendê-lo:
a globalização da economia ou a rede mundial de comunicações que
desafia a autoridade até de gover-
nos poderosos como o chinês. A cultura, ademais, principalmente a industrializada, obedece a movimentos e mercados internacionais, e o
mesmo se aplica aos padrões de
comportamento.
Por outro lado, a acreditarmos na
maneira como a história recente é
narrada, o Estado nacional desempenhou antes o papel de criador de
obstáculos.
Duas guerras mundiais principiadas no continente europeu, bem como um sem-número de conflitos
posteriores, a maioria vinculada à
formação e consolidação de novos
países ou à dissolução de antigos,
nada disso ajudou a inspirar confiança no modelo em questão.
Daí a multiplicação de organizações internacionais ou transnacionais, como a ONU ou a União Européia, cujo objetivo mais ou menos
explícito é o de superar a nação. Boa
parte dos progressistas, liberais e
demais bem-pensantes nos afiança
que, quanto mais autoridade se
transferir das unidades nacionais a
essas outras, menos sujeita a humanidade estará a megaconflitos como
e mais os indivíduos estarão protegidos por instituições capazes de zelar
por seus direitos.
Recorrer a um exame minucioso
da composição da ONU (que não
apenas alberga mais tiranias e cleptocracias do que democracias representativas, mas chega inclusive a
tratá-las mais respeitosamente e,
por assim dizer, a entregar a guarda
do galinheiro à raposa quando escolhe transgressores notórios para supervisionar o respeito aos direitos
humanos) ou de sua história (que inclui a passividade quando não a conivência diante de casos óbvios de
genocídio como o que ocorreu em
Ruanda em 1994) seria fácil, e o resultado se abriria ao argumento de
que uma implementação deficiente
não invalida por si só os princípios
nem as boas intenções.
As objeções à substituição do Estado nacional por organismos que
ambicionam uma "governança planetária" e a refutação das idéias que
subjazem a tais projetos deveriam
principiar com uma reinterpretação
da história do século 20.
A Primeira Guerra Mundial, freqüentemente atribuída à exacer-
bação do nacionalismo, poderia
também ser entendida como a
crise ocasionada pela dissolução
de entidades supranacionais (os
impé rios austro-húngaro, russo,
alemão e otomano) que careciam de
legitimidade.
Se a guerra seguinte é em geral vista como um embate de ideologias, é
mais raro se ouvir que estas foram
derrotadas pelo nacionalismo defensivo. Nazismo, fascismo etc. foram vencidos por países, não por
idéias. Sob ataque, a União Soviética
se reconverteu em Rússia e, após
Stalingrado, Goebbels achou conveniente não propagandear as ambições do Terceiro Reich, mas, sim,
conclamar à defesa da pátria alemã.
Exemplos tais ajudam-nos a lembrar que o Estado nacional é, antes
de mais nada, o meio mais eficiente
que se encontrou para promover a
defesa de uma população contra
predadores externos e garantir tanto sua liberdade quanto sua segurança em face de inimigos internos.
Não é o caso apenas de que organismos transnacionais nada podem fazer para deter um genocídio na África ou na Ásia. Eles tampouco dispõem dos meios ou motivações para
proteger os bens e a vida do cidadão
comum, nem há mecanismos pelos
quais este possa obrigá-los a tanto.
Qual é a urna na qual alguém que
discorde das decisões da ONU depositará seu voto de protesto?
Para piorar a situação, ao enfraquecimento institucionalmente internacionalista daquela parcela de
Estados nacionais que de fato funcionam, vem se associando, devido a
uma resposta menos pragmática
que ideológica à pressão migratória
global, uma espécie de transnacionalização interna de muitos países,
fenômeno este que, em vez de gerar
os tão louvados benefícios do multiculturalismo, tem antes promovido
complicações definidas por um termo mais antigo: a balcanização.
Numa era que já nasceu sob o signo das conflagrações assimétricas,
as pressões externas e internas que
corroem o Estado-nação prometem
beneficiar não uma utópica humanidade mas, num contexto "hobbesiano" de " salve-se quem puder", os
grupos subnacionais mais aptos a se
aproveitarem do caos, ou seja, as
máfias, os narcotraficantes, os contrabandistas de armas ou prostitutas e as redes terroristas.
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