São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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NELSON ASCHER

A nova desordem internacional


Em que urna alguém que discorde das decisões da ONU depositará seu voto de protesto?

TUDO LEVA a crer que o Estado nacional tornou-se um fóssil anunciado. Por um lado, os problemas e tendências atuais mais candentes parecem transcendê-lo: a globalização da economia ou a rede mundial de comunicações que desafia a autoridade até de gover- nos poderosos como o chinês. A cultura, ademais, principalmente a industrializada, obedece a movimentos e mercados internacionais, e o mesmo se aplica aos padrões de comportamento.
Por outro lado, a acreditarmos na maneira como a história recente é narrada, o Estado nacional desempenhou antes o papel de criador de obstáculos.
Duas guerras mundiais principiadas no continente europeu, bem como um sem-número de conflitos posteriores, a maioria vinculada à formação e consolidação de novos países ou à dissolução de antigos, nada disso ajudou a inspirar confiança no modelo em questão.
Daí a multiplicação de organizações internacionais ou transnacionais, como a ONU ou a União Européia, cujo objetivo mais ou menos explícito é o de superar a nação. Boa parte dos progressistas, liberais e demais bem-pensantes nos afiança que, quanto mais autoridade se transferir das unidades nacionais a essas outras, menos sujeita a humanidade estará a megaconflitos como e mais os indivíduos estarão protegidos por instituições capazes de zelar por seus direitos.
Recorrer a um exame minucioso da composição da ONU (que não apenas alberga mais tiranias e cleptocracias do que democracias representativas, mas chega inclusive a tratá-las mais respeitosamente e, por assim dizer, a entregar a guarda do galinheiro à raposa quando escolhe transgressores notórios para supervisionar o respeito aos direitos humanos) ou de sua história (que inclui a passividade quando não a conivência diante de casos óbvios de genocídio como o que ocorreu em Ruanda em 1994) seria fácil, e o resultado se abriria ao argumento de que uma implementação deficiente não invalida por si só os princípios nem as boas intenções.
As objeções à substituição do Estado nacional por organismos que ambicionam uma "governança planetária" e a refutação das idéias que subjazem a tais projetos deveriam principiar com uma reinterpretação da história do século 20.
A Primeira Guerra Mundial, freqüentemente atribuída à exacer- bação do nacionalismo, poderia também ser entendida como a crise ocasionada pela dissolução de entidades supranacionais (os impé rios austro-húngaro, russo, alemão e otomano) que careciam de legitimidade.
Se a guerra seguinte é em geral vista como um embate de ideologias, é mais raro se ouvir que estas foram derrotadas pelo nacionalismo defensivo. Nazismo, fascismo etc. foram vencidos por países, não por idéias. Sob ataque, a União Soviética se reconverteu em Rússia e, após Stalingrado, Goebbels achou conveniente não propagandear as ambições do Terceiro Reich, mas, sim, conclamar à defesa da pátria alemã.
Exemplos tais ajudam-nos a lembrar que o Estado nacional é, antes de mais nada, o meio mais eficiente que se encontrou para promover a defesa de uma população contra predadores externos e garantir tanto sua liberdade quanto sua segurança em face de inimigos internos. Não é o caso apenas de que organismos transnacionais nada podem fazer para deter um genocídio na África ou na Ásia. Eles tampouco dispõem dos meios ou motivações para proteger os bens e a vida do cidadão comum, nem há mecanismos pelos quais este possa obrigá-los a tanto. Qual é a urna na qual alguém que discorde das decisões da ONU depositará seu voto de protesto?
Para piorar a situação, ao enfraquecimento institucionalmente internacionalista daquela parcela de Estados nacionais que de fato funcionam, vem se associando, devido a uma resposta menos pragmática que ideológica à pressão migratória global, uma espécie de transnacionalização interna de muitos países, fenômeno este que, em vez de gerar os tão louvados benefícios do multiculturalismo, tem antes promovido complicações definidas por um termo mais antigo: a balcanização.
Numa era que já nasceu sob o signo das conflagrações assimétricas, as pressões externas e internas que corroem o Estado-nação prometem beneficiar não uma utópica humanidade mas, num contexto "hobbesiano" de " salve-se quem puder", os grupos subnacionais mais aptos a se aproveitarem do caos, ou seja, as máfias, os narcotraficantes, os contrabandistas de armas ou prostitutas e as redes terroristas.


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