São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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Autora revê raiz da arte engajada

Miliandre Garcia dribla leituras ideológicas do passado em "Do Teatro Militante à Música Engajada (1958-1964)"

Historiadora avalia que "manifesto" em defesa da instrumentalização política radical da arte não passou de uma "carta de intenções"

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nada como o tempo para arrefecer paixões e tirar a poeira das velhas caminhadas dos olhos. Se funciona bem com a história de um modo geral, o distanciamento crítico que só o passar dos anos pode conferir torna-se ainda mais essencial quando o assunto em questão é algo arrebatador como a relação entre a juventude brasileira dos anos 60 e a arte engajada.
Na tentativa de driblar leituras ideológicas sobre o período, a historiadora paulista Miliandre Garcia, 31, resolveu, em "Do Teatro Militante à Música Engajada (1958-1964)", tese de mestrado agora transformada em livro, colocar a lupa sobre o assunto de modo a deixar transparecer a heterogeneidade de discussões que foram levantadas a partir de dois marcos da arte de contestação da época: o CPC (Centro Popular de Cultura) e a chamada bossa nova nacionalista.
O primeiro foi criado em 1961, no Rio de Janeiro, por artistas ligados a teatro, música, cinema e literatura, e tencionava incentivar uma arte "nacional-popular" revolucionária. A experiência durou até 1964, quando a sede onde o CPC funcionava, na União Nacional dos Estudantes, na praia do Flamengo, foi incendiada por grupos clandestinos de direita que apoiavam o golpe militar de 1964. O CPC retornaria, depois, "disfarçado", no show "Opinião", que reunia artistas como Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti, e direção de Augusto Boal.
Garcia questiona o real impacto do "manifesto do CPC" (1962), texto de Carlos Estevam Martins que defendia a instrumentalização política radical da arte e justificava a interferência no conteúdo das criações para torná-las mais didáticas e engajadas. Para ela, o manifesto foi equivocadamente considerado pela historiografia como uma síntese dos objetivos da produção militante. Com isso, a experiência teria sido interpretada como um movimento de intenções direcionadas no sentido de priorizar a mensagem política em detrimento da qualidade artística.
Garcia defende que o texto não passou de uma "carta de intenções". "O CPC não teve um projeto delineado por um conjunto de regras deliberadas. O "manifesto" permitiu discutir o engajamento artístico. Mas é preciso reforçar que foi algo que gerou mais controvérsia do que consenso", disse à Folha.
A historiadora considera que o "manifesto" foi supervalorizado como documento, e, com isso, não se teria dado a devida importância para o debate entre vozes dissonantes sobre o tema, como as de Oduvaldo Vianna Filho, Glauber Rocha e José Guilherme Merquior.
Menosprezando o debate suscitado a partir do texto de Martins, a maioria das análises que tomaram o CPC como objeto de estudo até hoje teria reproduzido não mais do que uma primeira impressão sobre o texto, concentrando-se no argumento de que o grupo não atingiu seu principal objetivo: o de chegar às massas.

Dilemas intelectuais
Já a bossa nova nacionalista é retratada a partir da biografia do cantor e compositor Carlos Lyra. Sua trajetória é tomada como símbolo dos dilemas dos intelectuais de classe média.
Lyra sublinhava que, embora fosse preciso buscar elementos da cultura popular para enriquecer a bossa nova, os artistas deveriam conscientizar-se de que não podiam pretender conhecer as reais inquietações do que chamavam de "povo".
"Costuma-se classificar a bossa nova em duas vertentes: a "intimista" [ligada restritamente à questão formal] e a "nacionalista" [voltada para a preocupação com o conteúdo]. Mas essa divisão não contempla artistas que se preocuparam simultaneamente com forma e conteúdo, a exemplo de Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Nara Leão", diz Garcia.


DO TEATRO MILITANTE À MÚSICA ENGAJADA
Autor:
Miliandre Garcia
Lançamento: Editora Fundação Perseu Abramo
Preço: R$ 28 (160 págs.)




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