São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 2005

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FERNANDO BONASSI

O que acontece quando a esperança desaparece

Quando a esperança desaparece, o ressentimento requentado pelos amores malpassados torna os retardados professores, os pastores, impostores, e os amantes, predadores. Quando a esperança desaparece, a elite bem pensante prefere deixar carros importados e possantes para o deleite dos seus filhos impotentes, em vez de exemplos convincentes aos alunos que desconhecem essa história nacional. Quando a esperança desaparece, é normal que a memória se confunda com esquecimento, o pensamento, com lamúria, e o lamento das penúrias se confunda com conhecimento. As bibliotecas deixam de ser interessantes até para os bibliotecários, os otários mal-educados se transformam em malandros escolados, e os médicos roubados por convênios descontam nas facadas que recebemos por esses serviços públicos. Quando a esperança desaparece, o medo de ser feliz é tão grande que a falta de coragem é a única alternativa importante da múltipla escolha dos covardes. Quando a esperança desaparece, não se vê diferença entre fardados e bandidos, uma vez que uns e outros percebem que recebem o salário da mesma fome; os juízes supremos julgam as esdrúxulas e caquéticas letras das leis dos manuais e não mais a escrita dos minúsculos e patéticos homens escravizados por pesados contratos sociais. Quando a esperança desaparece, os conselhos ficam à mercê dos "conselhistas" animados por verbas de representação, os evangelhos da simplicidade, presos aos evangelistas da publicidade em cadeias de televisão, e Marx à mercê dos stalinistas de ocasião, fornecendo justificativas materialistas onde os vigaristas assassinam o imaginário socialista, dando às ovelhas apenas a pista do matadouro. Quando a esperança desaparece, desaparece a vontade de votar e só mesmo essa vontade de matar fica espreitando por uma oportunidade de roubar a espada da injustiça de verdade. Na realidade, quando a esperança desaparece, só os revólveres resolvem os conflitos e os que não se consomem nesses atritos se desgastam nos bancos de praça onde os assentos e os jornais são preparados para desempregados em massa. Quando a esperança desaparece, só restam oportunidades aos oportunistas congregados e empregados em surdina, renegando ou trocando até os próprios nomes por um lugar para varrer do chão seus montes de porcaria ou lamber as botas do patrão em família, usando o dinheiro alheio para limpar as sujeiras dos banheiros. Pois é por isso que, quando a esperança desaparece, os cômicos ficam crônicos, os anônimos viram sinônimos, e os vínculos especiais tornam-se vícios imorais. Assim, o defeito se parece com efeito, e o civismo, com cinismo. Os filhos apunhalam os pais pelo que deixaram de fazer, e os pais, por temerem uma posteridade melhor do que essa barbaridade. Os homens obtusos fazem negócios obscuros às claras, nas caras das câmeras escondidas e só esses doutores traficantes sabem muito bem o que podem oferecer a tantos meninos ignorantes em desencanto. Nesse contexto desesperançado, o sangue-frio para o futuro fica congelado no coração dos desgraçados em meio ao calor dos acontecimentos, levando os piores às melhores posições, onde o despeito advoga o desprezo em causa própria. A diversidade se confunde com adversidade e a coletividade, com "corretividade", daí que os iguais teimam em parecer diferentes do que são, mas pouco conseguem além de ser a imagem e semelhança dos conservadores anteriores. Quando a esperança desaparece, só o álcool dos botecos miseráveis faz viajar os trabalhadores responsáveis, ao verem seus devaneios e pedidos serem vendidos por igrejas e partidos. As pessoas até que gozam, mas desconhecem o prazer, transformando-se em gozadores. Os rebeldes viram terroristas, e os acovardados são premiados com promoções a perder de vista, onde se promovem a qualquer preço. A previdência dos coitados deixa tudo para a última hora, e os estrategistas malabaristas, todos os recursos para os últimos anos dos mandatos, tirando idéias e emoções baratas dos bolsos dos coletes e colarinhos encardidos pelo carteado marcado das licitações. Quando a esperança desaparece, é isso mesmo: os maiores segredos guardados são aqueles tão amesquinhados que se tornam fáceis de espalhar. Aqueles que fingem estar de brincadeira são os que falam mais seriamente, e os dementes demais são os que teimam em meio a tanta desconfiança, sendo fichados, banidos e internados para sessões de eletrochoque. A perna é menor que o passo, a vontade de ficar, maior que o desejo de melhorar, e o desejo de parar, melhor que a satisfação de se mover para conquistar. Quando a esperança desaparece, desaparece o receio de errar e, com ele, a chance de aprender a acertar. Quando a esperança desaparece, não se vê diferença entre certeza e crença, e só a loucura disso tudo parece fazer mais sentido que a razão que não tínhamos. Aliás, onde é que a burrice foi morar que a inteligência não se encontra para digerir o que se tem para engolir e vomitar?


@ - fbonassi@uol.com.br

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