São Paulo, sábado, 14 de julho de 2007 |
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MANUEL DA COSTA PINTO Devemos queimar Pascal?
"BLAISE PASCAL: Conversão e Apologética", de Henri Gouhier, é um clássico entre os estudos sobre o pensador do século 17. Lançado na França em 1986, recentemente ganhou tradução brasileira. Gouhier (1898-1994) foi um dos últimos representantes da escola francesa que, tendo Étienne Gilson e Martial Guéroult entre os paradigmas, praticava uma hermenêutica da estrutura interna do pensamento filosófico (método que não deve ser confundido com o estruturalismo de autores como Lévi-Strauss e Lacan, que criaram modelos lingüísticos de interpretação de fenômenos culturais, psicológicos etc.). Como Guéroult, Gouhier escreveu trabalhos importantes sobre Descartes, dentro dessa proposta de análise textual cerrada. Ao abordar Pascal, porém, ele declara ser impossível compreendê-lo segundo a "ordem das razões" -pelo simples motivo de não podermos considerar o autor dos "Pensamentos" um filósofo, no sentido técnico do termo. Não cabe aqui esmiuçar a complexa e erudita análise que Gouhier faz das fontes e mutações da escrita pascaliana. Basta dizer que ele detecta aí uma dinâmica que faz de seus textos o reflexo de uma conversão religiosa -da qual deriva uma apologia do cristianismo que transforma o convertido em conversor, em pregador de verdades reveladas pela fé. "A filosofia é investigação da verdade suposta como ainda não encontrada, a apologética é apresentação da verdade já posta como encontrada", escreve Gouhier -e isso seria suficiente para afastar Pascal do âmbito da reflexão filosófica. Por que então continuamos a ler Pascal? Por que nos preocuparmos com a obra teológica desse autor que, após genial carreira como físico e matemático, sofre crises místicas e se transforma em polemista da abadia de Port Royal, duelando com os jesuítas em torno de questões bizantinas sobre o livre-arbítrio? Aos olhos de um presente no qual religião rima com fundamentalismo, poderíamos parafrasear o ensaio de Simone de Beauvoir sobre o Marquês de Sade, perguntando: "Devemos queimar Pascal?". O autor das "Provinciais" foi adepto do jansenismo, corrente que negava a possibilidade de o homem ser "mestre de sua salvação ou de sua perda", deixando-o à mercê da graça divina. Alguns aforismos de seus "Pensamentos" (fragmentos da inacabada "Apologia da Religião Cristã") soam como máximas do terrorismo puritano: "A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se". Esse elogio da doutrina bíblica da queda é um espelho invertido de dogmatismos. "O extraordinário em Pascal", escreve Comte-Sponville, "é que ele não crê em nada: nem na justiça, nem nas leis, nem na tradição, nem no progresso. A fé o protegia de nossas superstições: ele só acreditava em Deus". Mesmo para quem não crê em Deus, Pascal ensina a descrer das ilusões profanas.
BLAISE PASCAL: CONVERSÃO
E APOLOGÉTICA
Autor: Henri Gouhier Tradução: Éricka Marie Itokazu e Homero Santiago Editora: Paulus/Discurso Quanto: R$ 35 (352 págs.) Avaliação: ótimo Texto Anterior: Margem direita Próximo Texto: Festival de foto destaca chineses e indianos Índice |
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