São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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CRÍTICA

"Nip/Tuck" acerta ao radicalizar a crítica

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Pouco menos de um ano atrás, esta coluna fez um julgamento um tanto severo sobre "Nip/Tuck". O seriado, que acabou de estrear sua segunda temporada no canal por assinatura Fox, continua sendo estética e moralmente repugnante, mas tem lá seu interesse.
Em primeiro lugar, a partir de um determinado momento já na primeira temporada, perdeu o tom quase policial que permeava seus primeiros episódios e ganhou em humor e drama. Sorte do seriado, que poderia ter se tornado um cruzamento glamouroso entre "CSI" e "Extreme Makeover" -com tudo que há de esquisito nessa junção.
Do primeiro, ele mantém o hiperrealismo do horror -há cenas explicitíssimas de bisturis cortando carne humana, agulhas costurando pele e coisas amenas do tipo. Mas em vez de transformar a ciência em auxiliar da lei e da ordem como faz a série policial, em "Nip/Tuck" há uma ciência extremamente perversa, uma medicina nada humanista, quase oposta à idéia de bem-estar, completamente servil à uma espécie de perfeição só verificável em coisas e não em pessoas.
Nesse sentido, lida com humor e ironia -pela caricatura, pelo exagero, pela desfaçatez- com os mesmos elementos que "Extreme Makeover", ou seja, obsessão pela forma física e pela beleza, leva a sério. Além disso, enquanto "Extreme Makeover" parece prometer que a perfeição existe em algum lugar de Beverly Hills, é só se submeter às múltiplas torturas físicas e mentais dos procedimentos cirúrgicos que o mais torto dos seres chega lá, em "Nip/Tuck" o drama se faz pela constatação constante e cruel da renitente imperfeição humana.
Na verdade, essa inflexão mais crítica nos roteiros também apareceu a partir do meio da primeira temporada e, ao que tudo indica, será a tônica da segunda. Com os personagens principais, os médicos Christian (Julian McMahon) e Sean (Dylan Walsh), completando 40 anos (tema desse primeiro episódio), a possibilidade de criar situações de conflito que explorem essa contradição se multiplicam.
Além disso, as piadas radicalizaram e melhoraram. Numa daquelas cenas pavorosas de cirurgia, a música de fundo era "Eyes Without a Face" -e era quase que literalmente isso, olhos sem rosto, que se poderia ver na tela...
Mas ainda é preciso ter estômago, tanto para agüentar a brutalidade dos procedimentos cirúrgicos -talvez a plástica seja a mais aflitivas de ser assistida das operações, uma vez que ainda dá para identificar o que está sendo cortado e furado e puxado- como do substrato ideológico que se adivinha em "Nip/Tuck". Ainda que tenha carregado no humor negro e numa certo acirramento do teor crítico, trata-se de um seriado de TV e se mantém na superfície. No fundo, subsistem noções quase eugênicas sobre a aparência e a beleza que, por vezes, também provocam uma certa náusea.

biabramo.tv@uol.com.br

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