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"Abdicamos de pensar filosoficamente"
Para Roberto Machado, país privilegiou especialização extrema e "o que mais se precisa na filosofia brasileira é de coragem'
Professor da UFRJ diz que não existe nenhum grande filósofo na história "que possa ser reduzido à condição de especialista"
DA REPORTAGEM LOCAL
A seguir, Roberto Machado
fala sobre a filosofia no Brasil e
diz que, "em geral, abdicamos
de pensar filosoficamente para
fazer história da filosofia".
(RC)
FOLHA - O sr. concorda que parece
haver pouca criatividade filosófica
no Brasil? Qual é a explicação possível para isso?
ROBERTO MACHADO - A pergunta
é boa, mas exigiria uma resposta que não sei se sou capaz de
dar. De todo modo, o que posso
dizer é que o trabalho para esse
livro foi muito formador. Porque fui capaz de comprovar,
com relação a mim mesmo,
uma coisa que considero uma
deficiência dos estudos filosóficos no Brasil. Caímos numa
perspectiva de especialistas
num período, num autor, e até
mesmo especialistas num livro.
O que me chama a atenção é
que em geral as pessoas restringem o seu universo ao daquele
filósofo eleito como um paradigma do que seja filosofar. E
não se chega nem ao estudo daqueles com os quais ele tem
uma relação profunda.
Uma grande lição que comprovei com esse estudo é que
não se começa do nada. Não
existe tábula rasa -sempre se
pensa a partir do que outros
pensaram. O interessante para
mim, na leitura desses documentos sobre a tragédia e o trágico, foi a demonstração de que
é sempre com pequenas reapropriações, com pequenas
torções que, dentro de uma região de idéias já produzidas por
outros, se chega a um pensamento novo, diferencial. Um
bom exemplo disso é de como
Schelling retoma a teoria do sublime de Schiller -profundamente marcada por Kant- numa perspectiva metafísica.
Creio que uma das dificuldades da filosofia brasileira é que
em geral abdicamos de pensar
filosoficamente para fazer unicamente história da filosofia.
A filosofia brasileira, mais ou
menos até a década de 60, me
parece ter sido marcada por um
ensino doutrinário, aquele que
privilegia um sistema filosófico
como verdadeiro, o expõe como
um conjunto de teses e situa, a
partir dele, os outros sistemas
como erro, desvio, ignorância.
Ora, com a importância que adquiriu a pós-graduação no Brasil, a partir do modelo da USP,
para combater esse modelo, representado principalmente pelo tomismo, as pessoas se preocuparam menos em fazer filosofia do que em saber filosofia,
em assimilar com rigor a filosofia dos outros.
O conhecimento dos filósofos é importante, e até mesmo
indispensável, mas a filosofia
não pode ser reduzida a isso. O
conhecimento da história da filosofia é uma condição necessária, mas não uma condição
suficiente para que alguém se
torne filósofo.
FOLHA - Esse modelo da USP era
explícito, não é?
MACHADO - Sim. É muito fácil
você encontrar um filósofo que
diga: "Não sou filósofo; sou historiador da filosofia". Defende-se o rigor, mas ousa-se pouco. O
que mais se precisa na filosofia
brasileira é de coragem.
Esse livro que escrevi é mais
temático do que monográfico.
Tentei com isso dar uma contribuição, dentro de minhas
possibilidades, para a superação dessa fase que, para alguns,
já está em andamento no Brasil. Ele não é um livro de especialista. Desses autores todos
que estudei, aquele com quem
eu tenho mais convivência é
Nietzsche. Os outros não. Certamente foi incômodo saber
que falava sobre um filósofo
que um colega meu estuda há
40 anos. Mas foi uma opção que
fiz. Minha ambição intelectual
hoje é ser mais extenso do que
profundo. Porque senão você
aprofunda muito um detalhe e
perde a dimensão do geral, tornando-se incapaz de fazer inter-relações conceituais.
FOLHA - Os grandes filósofos da
história foram tão extensos quanto
profundos?
MACHADO - Exatamente. Não
existe nenhum grande filósofo
que possa ser reduzido à condição de especialista. Tome Platão, Aristóteles, Kant. Todo
grande filósofo se aventurou
em muito mais áreas do que
compete a um especialista.
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