São Paulo, quarta-feira, 14 de novembro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A alma de Norman Mailer

Autor acreditou que adorar violência, sexo, transgressão e droga fazem de alguém um grande escritor. Não fazem

NUNCA simpatizei com o escritor machão. Exemplo? Hemingway, claro. A influência de Hemingway é inescapável para qualquer jornalista. Frase curta. Adjetivação mínima. Descrição impressionista. E alguns livros, como "O Sol Também se Levanta", que fazem parte do cânone. Mas o resto é dispensável. Touros? Caça? Boxe? Cortinas de fumo para esconder males maiores. Ainda lembro o dia em que resolvi visitar a casa onde Hemingway nasceu. Eu estava em Chicago e, numa tarde de ócio, abandonei o centro e rumei para Oak Park, nos subúrbios da cidade.
Cheguei. Casa modesta, transformada em museu e velada por simpático casal de idosos que falava do bicho com intimidade familiar. Ainda perguntei se eram. Não eram. Mas sabiam tudo. Idiossincrasias de infância. A história de cada objeto. E, surpresa, a profunda infelicidade da mãe de Ernest quando soube que o filho era rapaz. Até aos seis ou sete, o menino foi educado como menina. Vestido como menina. Tratado como uma. Anos depois, o machão andava fascinado com touradas e caçadas. Freud explica.
Mas o que diria Freud de Norman Mailer, o herdeiro de Hemingway? Soube da morte de Mailer, 84, com os jornais da manhã. E tentei lembrar um livro do homem verdadeiramente memorável. Comprei o último, "The Castle in the Forest". Desisti no meio. Uma história de Hitler como fruto de relação incestuosa entre pai e filha? Não serve. Mas o que serve? "Os Nus e os Mortos", o "romance de guerra" que lançou Mailer para a estratosfera, podia transportar uma certa frescura narrativa e psicológica em 1948. Em 2007, é relíquia de museu. Como são relíquias de museu as ficções de Mailer, que envelheceram barbaramente mal. Nenhuma surpresa: os "romances de época" raramente sobrevivem às épocas. Falar da Segunda Guerra, ou da contracultura dos "sixties", ou do Vietnã, ou de Marilyn Monroe tem interesse arqueológico, não literário.
Mailer acreditou que a adoração orgásmica e verborrágica da violência, do sexo, da droga e da transgressão fazem de alguém um grande escritor. Não fazem. Hoje, ler a coletânea "Advertisements for Myself", e o ensaio "The White Negro" -apologia da psicopatia como forma de "autenticidade existencial" -, é um espetáculo cômico e trágico. A cabeça de um adolescente retardado não é um espetáculo bonito.
E eu suspeito que Mailer sabia disso. Sessenta anos de escrita, 30 livros publicados -e o que fica de todo esse ruído demencial?
Mailer respondeu em 2003, com o único livro que sobrevive. "Os Fantasmas de Norman Mailer" deveria ser leitura obrigatória para qualquer escritor com ambições. Em exercício de honestidade tocante, Mailer confessa como a fama precoce é a pior inimiga. Retira do escritor o principal instrumento da sua arte: a invisibilidade. Só a invisibilidade permite observar, refletir e escrever.
Aos 25 anos, Mailer vendeu esse luxo para ganhar todos os outros. Luxos passageiros de um mundo que exigiu dele recorrentes números de circo. O dr. Freud explica pouco? O dr. Fausto explica tudo.


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