São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Ilustrada 50 Anos

Do paradoxo ao impasse

Financiamento seguirá sendo público, mas papel do estado precisa ser rediscutido

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

As engrenagens da produção cultural no Brasil operam sob um paradoxo. Principal peça da estrutura de financiamento à cultura, a Lei Rouanet nunca foi tão usada em seus 18 anos de vigência -movimentou cerca de R$ 1 bilhão em 2007-, nem tão arduamente combatida pelo MinC (Ministério da Cultura), órgão que a opera.
"Esse mecanismo beira a farsa. Não construiu responsabilidade social, não criou um capitalismo cultural, não fortaleceu empresas; pelo contrário, os produtores viraram dependentes, precisam de uma dose diária de Lei Rouanet para sobreviver", diz o ministro da Cultura, Juca Ferreira.
O instrumento constituiu a primeira experiência de fomento à cultura com base em incentivo fiscal no Brasil, autorizando o destino de parte do Imposto de Renda à realização de projetos culturais previamente aprovados pelo MinC.
"A concentração dos recursos no eixo Rio-SP é de 80%. O interesse básico do empresariado que se associa à lei é financiar quem já é consagrado, para ter retorno de imagem. O Estado disponibilizou recursos para aprofundar as distorções sociais e regionais do Brasil", afirma Ferreira.
A preocupação do ministro "é legítima, mas está mal aplicada no caso da Lei Rouanet", avalia o secretário estadual de Cultura de São Paulo, João Sayad, que cita a participação da região Sudeste de 73% no PIB (Produto Interno Bruto).
"A distribuição de recursos entre a federação é um tema delicado. Nessa discussão, SP e o Sudeste apanham, porque, do ponto de vista populista, é um argumento fortíssimo. Há até hoje quem acredite que o Nordeste é pobre porque São Paulo é rico, quando, na verdade, é o contrário. O Nordeste é menos pobre porque São Paulo deu um pouco certo", diz Sayad.
A intenção de reformar a Lei Rouanet está expressa no programa de Lula à Presidência nas eleições de 2002, porém, nunca foi feita. O MinC já promoveu incontáveis seminários para tratar do tema.
As discussões, no entanto, resultaram em pouco mais que uma extensa lista de lamentações, cujo fundamento é a reivindicação por mais dinheiro e mais facilidade para obtê-lo.
Entre artistas, é espinhoso o tema da desnecessidade do público, um efeito do uso da lei, que o ministro cita abertamente: "Estimulou uma distorção enorme na arte. Ninguém precisa mais do seu público", diz ele, já que as obras estréiam com seus custos de produção já cobertos pelo patrocínio.
Outra distorção, o financiamento público de produtos culturais para o consumo da elite, ficou transparente em 2006, quando o MinC autorizou a companhia canadense Cirque du Soleil a captar R$ 9,4 milhões para apresentar no Brasil um espetáculo cujos ingressos custavam entre R$ 50 (meia-entrada) e R$ 370.
"Acho que não é um erro da lei; é um erro da administração. Não deviam ter aprovado. Não deviam ter dado crédito ao banco xis, que quebrou lá no passado", diz Sayad, argumentando que "toda política governamental tem uma taxa de atendimento de seu objetivo inicial e uma taxa de não-atendimento, por corrupção, etc".
De acordo com o projeto de reforma da Lei Rouanet que Ferreira quer mandar ao Congresso, ela será diluída num conjunto de outros mecanismos cuja peça-chave é um fundo a ser gerido pelo MinC.
Pela proposta do ministério, o financiamento à cultura seguirá público, em sintonia com tendência mundial. A questão é: a decisão sobre como, quanto e onde aplicar esses recursos cabe ao Estado ou não?
Em si já complexa, a equação terá de ser resolvida com um ingrediente a mais -os desdobramentos da crise financeira mundial.
Em suma, o futuro próximo do financiamento à cultura no Brasil tende a sair do paradoxo para o impasse.


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