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Ilustrada 50 Anos
O papel do intelectual
Repolitizar o debate e aumentar o confronto de idéias podem ser a cura para o atual "mal-estar" na cobertura de cultura
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O jornalismo cultural e os intelectuais vinculados ao mundo acadêmico sempre tiveram
uma relação tensa e indissolúvel. Tanto quanto a ligação dos
cadernos de cultura com o mercado. É das características desse triângulo "amoroso" que resulta o tipo de jornal que o leitor terá nas mãos.
Para Marcos Nobre, professor de filosofia política da Unicamp, o impasse em que se encontra hoje o jornalismo cultural deriva de sua relação quase
simbiótica com o mercado. E se
o papel dos cadernos de cultura, mais do que qualquer outra
seção do jornal, é o de romper
parâmetros, sua oportunidade
e agenda futura estão dadas.
O parâmetro a ser rompido
hoje, diz Nobre, é o de que o
único elemento unificador da
cultura, e legitimador da agenda jornalística, é o mercado.
"A Ilustrada anda no fio da
navalha para não fazer do consumidor de cultura o seu denominador comum. A Ilustrada
corre o risco permanente de se
tornar um Guia da Folha explicado", ele diz. "Também
porque, durante algum tempo,
teve-se a ilusão de que essa seria uma saída para a tensão entre jornalistas e acadêmicos
que tem caracterizado o pêndulo do jornalismo cultural nos
últimos 30 anos."
Que tensão é essa, afinal? O
jornal precisa dos intelectuais
e da universidade, segundo Nobre, como garantia de certa
opinião independente de interesses comerciais, além de tecnicamente competente para a
avaliação dos produtos e eventos noticiados.
Durante algum tempo -que
teve como auge os anos 80- intelectuais também confluíram
para o jornal. "Quando se consolida a universidade -depois
do bem-sucedido processo de
implantação do sistema de
pós-graduação-, ela é ao mesmo tempo impedida de se
apresentar ao público de maneira mais ampla pela repressão da ditadura militar. Acadêmicos passaram a ocupar os
jornais como forma direta e explícita de intervenção política."
Um dos canais de veiculação
dessa cultura e crítica represadas foi, nos anos 80, o caderno
Folhetim, que teve como um
de seus editores o hoje crítico
de arte Rodrigo Naves. Em entrevista para o livro "Pós-Tudo
- 50 Anos de Cultura na Ilustrada" (Publifolha), ele diz que o
jornal abriu espaço para assuntos, autores e artistas até então
"recalcados", segundo a expressão do editor da Ilustrada,
Marcos Augusto Gonçalves.
"Houve uma renovação temática e autoral", diz Naves.
O historiador Milton Ohata,
editor de ensaios e obras de
ciências humanas na editora
Cosac Naify, cita o trabalho de
Naves como um momento
marcante de boa resolução nessa tensão entre universidade e
jornal que lhe parece improvável de ser repetido. "Aquilo
marcou muito toda a minha geração", diz Ohata.
Para Marcos Nobre, tal confluência entre universidade e
jornal não tem resultado, em
geral, num encontro harmonioso. Ao contrário, há "um
conflito entre produção acadêmica e produção jornalística
que permanece". "Até hoje,
quando se quer desqualificar
um acadêmico, diz-se que ele é
jornalista. E quem trabalha em
jornal entra em desespero
diante de textos de acadêmicos
que não conseguem formulações adequadas à linguagem
jornalística."
Produtos demais
Uma primeira tentativa de
fazer os dois mundos convergirem mais fortemente na definição de agenda do debate cultural no país ocorreu, a seu ver,
com a criação do caderno
Mais!. Ocorre que o momento
era justamente o de uma revolução na quantidade de produtos culturais ofertados.
"A descoberta da produção
cultural mundial em tempo
real teve muito de deslumbramento. E provocou uma reação
que perdura até hoje: a de que a
cultura se estilhaçou e que não
forma mais um todo homogêneo." Daí a impressão de que só
pelo mercado é possível unificar tal cultura "estilhaçada".
Contra essa tentativa de continuar a cobrir a cultura como
se fosse possível abarcar a totalidade dos produtos e assuntos,
Nobre propõe uma agenda para
o jornalismo cultural em que a
aproximação com os intelectuais teria papel importante.
Os principais pontos são: 1)
politizar a cobertura de cultura,
apresentando os projetos conflitantes de vida cultural no
país, e 2) "produzir conversas".
"É muito mais produtivo cobrir menos coisas, mas fazer
uma discussão sobre alguma
coisa, do que tentar abraçar tudo. Menos coisas com mais
densidade.
Menos espelho do que acontece, e mais escolha do que deve
ser discutido a fundo. A quantidade tem atrapalhado, e muito", ele diz.
O antropólogo Hermano
Vianna acrescenta um projeto
extra: diz que o próprio "mercado" em que o jornalismo cultural se baseia já não é a totalidade do mercado, que nem forma estabelecida tem.
Caberia perguntar, ele diz:
"O que é o mercado? Como funciona? Como fazer uma crítica
consistente do funcionamento
contemporâneo do mercado?".
"Por exemplo: falar em mercado da música hoje, o que significa? As tais grandes gravadoras em atuação no Brasil não
têm nem cem artistas contratados. E esse número declina todos os dias."
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