São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Ilustrada 50 Anos

O papel do intelectual

Repolitizar o debate e aumentar o confronto de idéias podem ser a cura para o atual "mal-estar" na cobertura de cultura

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O jornalismo cultural e os intelectuais vinculados ao mundo acadêmico sempre tiveram uma relação tensa e indissolúvel. Tanto quanto a ligação dos cadernos de cultura com o mercado. É das características desse triângulo "amoroso" que resulta o tipo de jornal que o leitor terá nas mãos.
Para Marcos Nobre, professor de filosofia política da Unicamp, o impasse em que se encontra hoje o jornalismo cultural deriva de sua relação quase simbiótica com o mercado. E se o papel dos cadernos de cultura, mais do que qualquer outra seção do jornal, é o de romper parâmetros, sua oportunidade e agenda futura estão dadas.
O parâmetro a ser rompido hoje, diz Nobre, é o de que o único elemento unificador da cultura, e legitimador da agenda jornalística, é o mercado.
"A Ilustrada anda no fio da navalha para não fazer do consumidor de cultura o seu denominador comum. A Ilustrada corre o risco permanente de se tornar um Guia da Folha explicado", ele diz. "Também porque, durante algum tempo, teve-se a ilusão de que essa seria uma saída para a tensão entre jornalistas e acadêmicos que tem caracterizado o pêndulo do jornalismo cultural nos últimos 30 anos."
Que tensão é essa, afinal? O jornal precisa dos intelectuais e da universidade, segundo Nobre, como garantia de certa opinião independente de interesses comerciais, além de tecnicamente competente para a avaliação dos produtos e eventos noticiados.
Durante algum tempo -que teve como auge os anos 80- intelectuais também confluíram para o jornal. "Quando se consolida a universidade -depois do bem-sucedido processo de implantação do sistema de pós-graduação-, ela é ao mesmo tempo impedida de se apresentar ao público de maneira mais ampla pela repressão da ditadura militar. Acadêmicos passaram a ocupar os jornais como forma direta e explícita de intervenção política."
Um dos canais de veiculação dessa cultura e crítica represadas foi, nos anos 80, o caderno Folhetim, que teve como um de seus editores o hoje crítico de arte Rodrigo Naves. Em entrevista para o livro "Pós-Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada" (Publifolha), ele diz que o jornal abriu espaço para assuntos, autores e artistas até então "recalcados", segundo a expressão do editor da Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves.
"Houve uma renovação temática e autoral", diz Naves.
O historiador Milton Ohata, editor de ensaios e obras de ciências humanas na editora Cosac Naify, cita o trabalho de Naves como um momento marcante de boa resolução nessa tensão entre universidade e jornal que lhe parece improvável de ser repetido. "Aquilo marcou muito toda a minha geração", diz Ohata.
Para Marcos Nobre, tal confluência entre universidade e jornal não tem resultado, em geral, num encontro harmonioso. Ao contrário, há "um conflito entre produção acadêmica e produção jornalística que permanece". "Até hoje, quando se quer desqualificar um acadêmico, diz-se que ele é jornalista. E quem trabalha em jornal entra em desespero diante de textos de acadêmicos que não conseguem formulações adequadas à linguagem jornalística."

Produtos demais
Uma primeira tentativa de fazer os dois mundos convergirem mais fortemente na definição de agenda do debate cultural no país ocorreu, a seu ver, com a criação do caderno Mais!. Ocorre que o momento era justamente o de uma revolução na quantidade de produtos culturais ofertados.
"A descoberta da produção cultural mundial em tempo real teve muito de deslumbramento. E provocou uma reação que perdura até hoje: a de que a cultura se estilhaçou e que não forma mais um todo homogêneo." Daí a impressão de que só pelo mercado é possível unificar tal cultura "estilhaçada".
Contra essa tentativa de continuar a cobrir a cultura como se fosse possível abarcar a totalidade dos produtos e assuntos, Nobre propõe uma agenda para o jornalismo cultural em que a aproximação com os intelectuais teria papel importante.
Os principais pontos são: 1) politizar a cobertura de cultura, apresentando os projetos conflitantes de vida cultural no país, e 2) "produzir conversas".
"É muito mais produtivo cobrir menos coisas, mas fazer uma discussão sobre alguma coisa, do que tentar abraçar tudo. Menos coisas com mais densidade.
Menos espelho do que acontece, e mais escolha do que deve ser discutido a fundo. A quantidade tem atrapalhado, e muito", ele diz.
O antropólogo Hermano Vianna acrescenta um projeto extra: diz que o próprio "mercado" em que o jornalismo cultural se baseia já não é a totalidade do mercado, que nem forma estabelecida tem.
Caberia perguntar, ele diz: "O que é o mercado? Como funciona? Como fazer uma crítica consistente do funcionamento contemporâneo do mercado?".
"Por exemplo: falar em mercado da música hoje, o que significa? As tais grandes gravadoras em atuação no Brasil não têm nem cem artistas contratados. E esse número declina todos os dias."


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