São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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FERREIRA GULLAR

Repto ao ministro da Cultura

O leitor deve ter acompanhado pela imprensa a polêmica que ocupou os jornais, desencadeada involuntariamente por declaração minha durante uma sabatina promovida por este jornal. O assunto MinC não foi trazido à discussão por mim, mas por alguém da platéia. Comecei minha resposta esclarecendo que não acompanho de perto o trabalho daquele ministério, mas ouço reclamações e críticas a certa tendência centralizadora na sua condução.
Foi o bastante para que, no dia seguinte, um pau-mandado do ministro enviasse ao jornal uma carta acusando-me de stalinista. Como tenho preguiça de brigar, respondi, numa linha, que a tal carta parecia escrita pelo antigo SNI. Sim, porque é uma coisa velha, careta, acusar alguém de stalinista a esta altura; quem age assim é a direita, o anticomunismo hipócrita. A intelectualidade reagiu indignada, e o ministro, em lugar de se desculpar, subiu ao palco e nos ofereceu a própria cabeça. Não é o caso: o que queremos é que ele dê expediente integral no ministério, faça jus ao cachê que lhe pagamos.
Afora o MinC, todo mundo sabe que, quando o Partido Comunista do Brasil se cindiu, os stalinistas ficaram no PC do B e os não-stalinistas, no PCB. Pois foi para o PCB que eu entrei muitos anos depois e por razões especiais, já que não queria entrar para partido nenhum, comunista ou não. A partir de 1962, fui atuar no CPC da UNE, de que me tornei presidente. Brigávamos pela reforma agrária, pela reforma universitária, pela reforma urbana. Era isso stalinismo? Na noite do golpe militar, em 1º de abril de 1964, entrei para o PCB. Queria lutar contra a ditadura que nascia e não poderia fazê-lo isolado. O PCB nada tinha de stalinista, nele tudo se discutia abertamente.
Não dou estas explicações ao MinC, mas a você, leitor, que merece minha consideração e meu respeito. Embora não goste de falar bem de mim mesmo, devo dizer que sou das pessoas menos autoritárias que conheço, jamais gostei de mandar; gosto, sim, de discutir, porque estou sempre questionando minhas idéias e as dos outros e, por isso mesmo, nunca me considero dono da verdade, fonte de intolerância e autoritarismo. Ou os donos do MinC não sabem quem sou ou quiseram me desqualificar porque não toleram críticas. Eles, sim, como disse Caetano Veloso, estão a um passo do totalitarismo.
E, por falar em MinC, vou lhes contar uma história. Quando, no final de 1992, fui nomeado presidente do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (Ibac), cujo nome mudei para Funarte, a primeira coisa que fiz foi reunir todos os diretores em meu gabinete e perguntar-lhes quais eram os projetos que tinham para a instituição. Disse-lhes que eles eram a instituição enquanto eu estava ali de passagem. A partir daquele dia, tudo na Funarte era decidido nessas reuniões, inclusive a distribuição da verba orçamentária. Não podia haver caixa dois. Todos sabiam de tudo. Será isso o que o MinC chama de stalinismo?
Dias depois de assumir o cargo, perguntaram-me, num programa de televisão, como encontrara a instituição. Respondi: "Encontrei tudo funcionando bem". No mesmo dia, o meu antecessor telefonou-me agradecido. Aquela atitude minha era inusitada, pois o que se costuma fazer é afirmar que se recebeu uma "herança maldita" para depois culpar o antecessor pelas merdas que venha a praticar.
E assim, entre acertos e erros, cumprimos nossas tarefas, reabrimos o Salão Nacional de Arte, criamos o Prêmio Nacional de Arte, o Prêmio Nacional de Música, retomamos o projeto Pixinguinha, terminamos as obras do Museu do Folclore, criamos a revista "Piracema" e o Espaço Oscar Niemeyer. A certa altura, meu amigo José Aparecido de Oliveira, que me havia indicado para o cargo, telefonou-me para dizer-me que o presidente Itamar Franco decidira me nomear ministro da Cultura. Respondi que me sentia honrado com a escolha, mas não queria ser ministro. O assunto chegou aos ouvidos de um jornalista, que me perguntou por que não aceitara o ministério. "Porque não sirvo para ministro, respondi. Se aos 64 anos de idade, não soubesse para que sirvo, seria um idiota". Mas a vaidade às vezes cega as pessoas.
Continuei à frente da Funarte até que, eleito um novo presidente da República e nomeado um novo ministro, fui substituído. Ao saberem disso, os diretores e muitos funcionários foram para meu gabinete, mostrando-se consternados. Alguns dos diretores afirmaram que iam se demitir imediatamente. Pedi-lhes que não o fizessem, pois o mais importante era dar continuidade aos projetos da instituição. Se o novo presidente decidisse mantê-los, deveriam continuar. "Todos nós estamos aqui para servir à sociedade e não simplesmente a este ou àquele governo", disse eu.
Sempre tive horror ao stalinismo. Na tal sabatina, afirmei que a luta pelo socialismo mudara o capitalismo, obrigando-o a fazer concessões aos trabalhadores. Só a direita burra e os safados dizem que marxismo e stalinismo são a mesma coisa. Fui caluniado. Por isso, desafio o ministro Gil e seu javali de gabinete a citarem uma só frase minha, escrita em qualquer época, em defesa do stalinismo. Se não o fizerem, estarão admitindo tacitamente que são caluniadores e irresponsáveis. Ficarei à espera.

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