São Paulo, Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999
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GASTRONOMIA
Chef brasileiro quer o topo do mundo

NINA HORTA
Colunista da Folha

Para um cozinheiro ser bom é preciso que tenha controle das técnicas básicas. "Técnicas básicas" são as palavras mágicas. Foi disso que o chef Suaudeau, discípulo de Paul Bocuse, sentiu falta quando chegou ao Brasil. Muito cozinheiro cheio de bossa, mas sem treinamento, sem boas condições de trabalho e consequentemente sem auto-estima, sem orgulho da profissão.
Ele, Laurent Suaudeau, que passara por uma escola, que fizera estágios, que já descascara todas as batatas do mundo, chorara com milhares de cebolas, obedecera todas as ordens, gostava de ser cozinheiro, queria respeitar e ser respeitado.
Propôs a si mesmo elevar o status do mestre-cuca no Brasil, retirar a pecha de profissão de gato borralheiro, o que não foi nem é trabalho fácil. A história de seu esforço é longa, cheia de percalços e teimosia. Se tivesse um brasão, o lema seria "água mole em pedra dura tanto bate até que fura".
Em 1995 se reuniu com Jorge Monti, um agitador cultural culinário, com Emmanuel Bassoleil, nosso grande chef "paulista", dono do Roanne e, com outros chefs, fundou a Associação Brasileira de Alta Gastronomia, a ABAGA.
Patrocinados pela Nestlé, pois treinar chefes custa caro, organizaram o concurso Nestlé Toque d'Or, que indicaria o candidato ao Concours Mondial de la Cuisine Bocuse d'Or, criado pelo mestre Paul Bocuse em 1987.
Fui assistir ao concurso nacional de 98. E fiquei pasma. Seriam cozinheiros brasileiros aquela brigada se levando a sério, uniformizada, cortês, limpa, limpíssima, metódica, que sabia lidar com as facas, fazer caldos transparentes, saltear foie gras, assar palmito dentro de massa folhada, tudo dentro de minutos cronometrados em fogões sofisticados? Quanto treino por trás daquilo...
Olhem, foi um prazer. Dentre os chefs, rapazes brasileiros de origem humilde, outros de classe média, alguns de classe alta, todos unidos pela mesma linguagem profissional, pelo mesmo padrão de trabalho, felizes e concentrados num ambiente de cozinha-escola.
E é só isso que interessa. O treinamento e o reconhecimento da profissão. O importante para o Brasil e para os nossos cozinheiros nesta competição é o que vai por trás dela, a profissionalização, a valorização deste trabalho.
O prêmio até que viria a calhar, mas realmente não é o principal.
A caminho de Lyon 99, para o concurso mundial, de 26 a 27 de janeiro, estão Frederico Frank e seu ajudante André Luis Pereira, os dois do restaurante Roanne, treinados pelo mais que bom, o ótimo Bassoleil.
Vão levando uma tralha,(quem já viu cozinheiro andar sem tralha?) de 150 quilos de equipamento, além de todos os ingredientes brasileiros, como cajus maduros, furiosamente exóticos, palmitos duros de miolo mole, cortadores de massa de pastel e tudo o mais.
Os ingredientes do menu que vai ser julgado vêm da França, e como cozinhá-los e apresentá-los é tarefa dos meninos treinados durante o ano todo. Ficam parecendo robôs criativos, trabalhando com uma eficiência de time imbatível.
O prato de peixe é uma merluza preta com vieiras e molho de camarão. A originalidade fica por conta do capim-santo e uma infinidade de pequenos detalhes caprichosos. A ave é um supremo de pombo em crosta de castanha de caju e chartreuse de confit de pombo. Frescuras e mais frescuras. O peixe e o pombo são franceses, o restante é brasileiro da gema.
Tudo isso cercado de 1.001 dificuldades e regras e exigências de deixar um cozinheiro louco.
Os pratos e acompanhamentos -um monte de acompanhamentos- vão dispostos em enorme bandeja de prata. Cozinhar bem os chefs sabem. A dor de cabeça fica em arrumar aquele bandejão com graça, e de modo que os molhos não se misturem, os gostos não se neutralizem.
Originalidade? Neste mundo globalizado está ficando cada vez mais difícil. Desconfio que só vamos arrasar quando ficarmos por dentro dos ingredientes da Amazônia, quando fizermos purê de açaí muito roxo, quando anestesiarmos a língua dos jurados com jambu e fizermos ensopados de carne com folhas de mandioca..
Mas nada importa. Não queremos épater les bourgeois nem o primeiro ou último lugar. Importa é o novo espírito, o aprendizado, o reconhecimento do cozinheiro brasileiro. Em todo caso, boa sorte, meninos.


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