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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"O TACÃO DE FERRO"

Obra, publicada em 1907, tem posfácio de Leon Trótski

Jack London joga luz na história em ficção sociológica

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O norte-americano Jack London (1876-1916) foi um autor bem-sucedido. Emplacou um punhado de best-sellers, como "Caninos Brancos" e "Martin Eden", além de ganhar mais de um milhão de dólares em sua carreira. "O Tacão de Ferro", publicado em 1907, teve vários admiradores. Dois dos mais famosos foram o escritor Anatole France e o político Leon Trótski, que declarou: "O livro causou-me - falo sem nenhum exagero - uma profunda impressão".
O julgamento de Trótski, que não era nem literato nem crítico, é certeiro. Segundo o russo, o escritor abriu mão de recursos estilísticos para fazer "análise e prognóstico sociais". London estaria "menos interessado no destino individual de seus heróis do que no destino da humanidade".
"O Tacão de Ferro" é no fundo um romance de tese. Em vez de ficção científica, pode-se dizer que se trata de uma "ficção sociológica". O ponto de partida é a descoberta, num futuro distante e utopicamente harmonioso, de uns manuscritos redigidos por Avis Everhard em 1932.
Esses documentos descrevem a aurora de um movimento que, séculos depois, acabaria proporcionando tal estado de equilíbrio social. Iniciam-se em 1912, quando a aristocrata Avis se casa com o revolucionário Ernest Everhard. Os Estados Unidos estão nas mãos de meia dúzia de oligarcas.
Os operários ganham salários de fome. Uma multidão de miseráveis se forma. Em resposta à tentativa dos reformadores de atingir o poder por meio das eleições, a oligarquia cria um sistema de repressão chamado Tacão de Ferro.
Avis narra a luta dos socialistas contra o Tacão de Ferro. A Primeira Revolta é esmagada. A Segunda também seria, mas Avis não sabe disso. Para ela, a revolução sairia vitoriosa e seu relato serviria para celebrizar a memória do marido, morto dois meses antes. A narrativa é interrompida bruscamente. Avis, supõe-se, é assassinada após ter escondido os manuscritos.
Tudo isso é revelado num preâmbulo pelo editor, que ainda supre as lacunas do original com notas sobre o subsequente rumo dos acontecimentos. O expediente faz London mergulhar num exercício de futurologia. Prevê o avanço da cirurgia plástica e o caos nos meios de transporte urbanos. Além disso, a data escolhida para a Primeira Revolta, a primavera de 1918, é curiosamente próxima da Revolução Russa, ocorrida em 1917.
Da perspectiva literária, porém, a coisa não funciona tão bem. Os personagens são ocos, maiores ou menores que a vida. Desnudando de saída a intriga, London descuida da narrativa. Abusa da hipérbole e das antíteses.
O que lhe importa são as idéias de Ernest sobre o conflito entre capital e trabalho ou sobre a teoria da mais-valia. Embora seja interessante na exposição da tese marxista e por revelar a posição romanticamente pessimista do autor, a obra parece arrastar-se.
O clímax do romance está na descrição da Comuna de Chicago, que sintetiza o massacre infligido à Primeira Revolta. Nessas cenas terríveis, London logra unir, de forma assustadoramente expressionista, tese e drama.
A luta de classes explode sangrenta nas ruas de Chicago. A ela conflui uma massa fantasmagórica de miseráveis, que o autor denomina "povo do abismo". É um toque de gênio artístico, que demora demasiado a ocorrer.


O Tacão de Ferro
  
Autor: Jack London (prefácio de Anatole France e posfácio de Leon Trótski) Tradutor: Afonso Teixeira Filho Editora: Boitempo Editorial Quanto: R$ 32 (270 págs.)



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