São Paulo, sábado, 15 de março de 2008

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crítica

Murakami mergulha na ficção dos EUA

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aos poucos, e de maneira bem vagarosa, o público brasileiro vem sendo apresentado ao furacão japonês Haruki Murakami. O ritmo é determinado não pela cronologia, mas para onde sopram os ventos da demanda comercial no exterior de alguns livros desse autor freqüentemente listado para o prêmio Nobel. Primeiro chegaram seus títulos mais vendidos, como "Minha Querida Sputnik" e "Norwegian Wood" (4 milhões de exemplares vendidos só no Japão), ou antigas experiências no âmbito do policial "hard-boiled", como "Caçando Carneiros" e "Dance Dance Dance".
Agora é a vez de "Kafka à Beira-Mar", romance cujo êxito não se resume às cifras ofuscantes e promove formidável convergência das linhas narrativas dos sucessos anteriores.
Tornado célebre por sua crônica absolutamente idiossincrática de amores perdidos e impossíveis, Murakami não pode, entretanto, ser enquadrado nessa camisa-de-força romântica. Sua literatura, assim como a de seus companheiros de geração Ryu Murakami e Genichiro Takahashi, nada com amplas braçadas na rica tradição japonesa. O que a conforma, porém, é um verdadeiro mergulho contracorrente na ficção americana.
Não seria aqui de todo deslocado sugerir sua adesão a certa "tradição" pós-moderna do pastiche e da reinvenção de gêneros, presente também na obra de escritores ocidentais feito Paul Auster.

Mito de Édipo
"Kafka à Beira-Mar" consegue a proeza de meter o dedo na ferida de um amor profundo e de extração mítica, liqüidificando de maneira onírica o mito de Édipo às fábulas rurais e medievais do Japão, além de mexer com certos traumas latentes do pós-guerra. Nisto talvez seja o livro mais intensamente japonês de Murakami.
Kafka Tomura é um adolescente de 15 anos que foge de debaixo das asas do pai sinistro, deixando Tóquio e uma vida traumática para trabalhar numa pequena biblioteca de província. Abandonado pela mãe na infância, sonha reencontrá-la e à irmã, mesmo tendo sido amaldiçoado pelo pai: ele haverá de cumprir sua sina mitológica, matando o pai e copulando com a mãe. Ao mesmo tempo, acompanha-se a trajetória de Nakata, um ancião bondoso e idiota que tem a capacidade de conversar com gatos.
Cultuador de romances tão extensos quanto imperfeitos, Murakami tem a qualidade impalpável de proporcionar experiências humanas e comovedoras ao se apoiar no absurdo.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).

KAFKA À BEIRA-MAR
Autor:
Haruki Murakami
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 54,90 (572 págs.)
Avaliação: ótimo


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